Este texto
tem por objetivo expor sucintamente as principais informações que dizem
respeito a um termo que em si mesmo apresenta dificuldades quanto à verdadeira
ou profunda compreensão do seu significado. De modo bastante simples, por dharma (em páli dhamma) se pode entender o ensinamento ou o conjunto dos
ensinamentos do Buda e o caminho que conduz ao Pleno Despertar. Mas mesmo que
se queira tornar o entendimento sobre tal verbete o mais simplificado possível,
ainda assim são necessárias palavras adicionais.
É que a raiz
sânscrita da palavra, ou seja, dhr,
cujo sinônimo é “sustentar”, “apoiar” ou “manter”, significaria que o Dharma é
aquilo que sustenta, mantém ou até possibilita a ocorrência da totalidade dos
fenômenos. E isso porque quem perceber ou realizar a verdade última
deparar-se-ia com a produção de tudo o que há no Universo, seja de natureza
material ou mental. Neste particular, é interessante fazer uma brevíssima referência
ao Dharmakaya, um dos elementos da
(talvez[?] inadequadamente chamada) teoria dos três corpos do Buda.
O Dharma,
quando associado à palavra kaya (corpo em sânscrito), revela o chamado
Corpo do Dharma ou Corpo da Verdade (Absoluta), revelando a essência da
natureza de todos os fenômenos, os quais têm, no conceito do sunyata (ou vacuidade), a inteireza da
sua expressão mais profunda. Desta forma, aquele que realiza o estado de Buda
apresenta também, como característica, a capacidade de transmitir ensinamentos
relativos a tal ou tais conceitos, de modo que o discípulo possa perceber e, se
o caso, realizar o Nirvana.
A dificuldade
de se estabelecer um conceito do Dharma, majoritariamente aceita, talvez até
perdesse um pouco de sentido, visto que a complexidade de seu significado está
diretamente relacionada com o grau de entendimento de cada adepto e tal
afirmação pode também ter como base os diferentes ensinamentos dados pelo Buda
Shakyamuni ao longo dos mais de 40 anos em que permaneceu proferindo seus
discursos. Isso porque se diz, dentro do Budismo, que houve três “giros” da
roda do Dharma, os quais também corresponderiam ao que posteriormente se
denominou como veículos Hinayana, Mahayana e Vajrayana.
Exemplo da
diversidade de entendimentos acerca do que é o Dharma é apresentado por CORNU
(2004, p. 147), ao dizer:
A palavra
dharma possui dois sentidos principais: 1º. o ensinamento do Buda; 2º. os
fenômenos, “o que mantém a sua própria identidade”. Mas tradicionalmente se lhe
atribuem dez sentidos principais:
1.
Todos os cognoscíveis (SC. jñeya, TIB. shes-bya),
ou seja, o conjunto de fenômenos compostos ou condicionados (SC. samskrta, TIB.
‘dus-byas) e de fenômenos não-compostos ou não-condicionados (SC. asamskrta,
TIB. ‘dus-ma-byas).
2.
A via ou o Dharma da verdade do caminho.
3.
O nirvana ou “além do sofrimento” (TIB. mya-ngan
‘das-pa) ou Dharma da verdade da cessação.
4.
Os objetos do espírito (SC. manovisaya, TIB.
yid-kyi yul), ou seja, os objetos ou fenômenos mentais (SC. dharmāyatana, TIB. chos-kyi skye-mched).
5.
Os méritos (SC. punya, TIB. bsod- nams), ou
seja, todo comportamento virtuoso, todo pensamento e ação sadios.
6.
O tempo de vida (SC. āyu, TIB. tshe).
7.
As escrituras do Dharma (SC. dharmapravacana,
TIB. gsung-rabs), o Tripitaka, etc.
8.
Os objetos materiais (SC. abhutika, TIB.
‘byung-‘gyur) que surgem dos elementos e se diz sujeitos a transformação.
9.
As regras (TIB. nges-pa), a tomada de votos
espirituais.
10. As
tradições religiosas (SC. dharmanīti,
TIB. chos-lugs), que englobam as diversas tradições e costumes religiosos do
mundo.[1]
HUMPHREYS
(1997, p. 71) apresenta um entendimento nada enciclopédico, mas bem
personalizado, ao dizer que:
Quase todos
os homens têm um “Deus” que confere significado e propósito às suas
existências. Tal conceito pode ser produto da criação pela família, pode ser
formulado a partir de estudos feitos ou pode ainda ser o remanescente de alguma
vida prévia. Apenas os Mestres, Rishis, Roshis, ou que nome tenham, não
possuindo a noção de “outro” carecem da necessidade do conceito de Deus em
qualquer de suas formas (...) O nome do meu Deus é Dharma. Que significa tal
palavra? Seu significado básico é amparar. Outros termos usuais são Lei, Norma,
Dever, Ensinamento. No budismo oriental a denominação é Buda-Dharma, ou dhamma
na forma Pali. A mim o meu Deus dá uma plataforma que me ampara; dá significado
à minha vida, bem como o objetivo e a agenda dessa vida; além disso, os meios
de fazer frente à dita agenda e a força para levá-la a cabo.[2]
O Lama
Rendawa, ao comentar o texto de NAGARJUNA (1994, p. 41), expõe de maneira
tipicamente doutrinária o entendimento acerca do Dharma, nos seguintes termos:
As virtudes
do Darma são as seguintes: “O Darma do Bhagavan é bem-afirmado, capaz de ver
com correção, isento de males, eterno, possuidor da transmissão correta, digno
de contemplação e próprio para ser compreendido pelos sábios por meio da
experiência pessoal”. Em resumo, estas qualidades indicam o Darma dúplice da
doutrina e da realização (...) A seguinte citação tirada da escritura Uttaratantra (capítulo 1, estrofe 9)
serve como definição do Darma:
Louvor àquilo
que não pode ser examinado sob o ponto de vista do seu não-existir, do seu
existir, de ambos, nem de outra coisa qualquer que não seja o existir ou o
não-existir; que não tem explicação verbal, que deve ser compreendido por cada
pessoa; e constitui a paz: o Darma Sagrado, o sol que irradia o fulgor da
sabedoria imaculada que sobrepuja o apego, o ódio e a ignorância com relação a
todos os objetos.[3]
Somente com
os elementos acima, é possível uma grande discussão sobre o significado do
Dharma. De maneira mais específica, DAVID-NEEL (2005, p. 46) ao falar sobre as
Quatro Nobres Verdades, ou seja, o primeiro conjunto de ensinamentos proferidos
pelo Buda Shakyamuni, pouco após sua iluminação, diz que:
Absolutamente
não nos encontramos diante de um sistema que tem a pretensão de nos esclarecer
sobre a origem do mundo e sobre a natureza da Causa Primordial. Não se trata de
revelação feita ao homem por uma divindade, nenhuma alusão a um poder
extra-humano, nenhuma promessa de ajuda sobrenatural aparecem no discurso do
Buda. Trata-se de uma luta do homem contra o sofrimento que o sufoca, de uma
luta que ele deve enfrentar só, e da qual ele pode sair vencedor por meios
puramente humanos (...)
Na realidade,
as Quatro Verdades não exprimem nenhuma verdade, se compreendemos estas
palavras em seu significado comum, de fato demonstrado ou revelado. Afora a
afirmação da possibilidade, existente para nós, de seremos os próprios agentes
de nossa libertação, as Quatro Verdades são apenas a exposição de um método de
salvação. O próprio budismo, aliás, não pretendeu jamais ser outra coisa.[4]
Que conjunto
de ensinamentos ou caminho foi esse? Seguindo uma didática compatível com o
nível de entendimento de cada indivíduo, o Buda Shakyamuni desenvolveu uma pedagogia
muito adequada, isso porque, em linhas gerais, se pode dizer que o Budismo estabelece um sistema que auxilia
a todos perceberem especialmente a natureza da mente, da sua própria condição e
também da realidade, alcançando a auto-realização e eliminação do sofrimento em
todas as suas formas, além da superação da cadeia de renascimentos o que é
expresso numa palavra por Nirvana (em
sânscrito, ou Nibbana, em páli),
objetivo de todo praticante.
Quais seriam
as bases desse sistema? Do ponto de vista empírico, é inegável que o Budismo
apresenta uma forma de constatação cujo método é a incansável observação dos
processos e essência mentais, o que é feito por intermédio de uma série de
procedimentos ou técnicas. Concomitantemente, se realiza a constante prática do vasto conjunto de
ensinamentos. Assim, é importante enfatizar que se trata essencialmente de uma
filosofia, modo de vida ou modus operandi
nitidamente pragmática, não meramente contemplativa.
Além disso,
em algumas tradições do Budismo, em particular nas Escolas do Budismo Tibetano,
é importantíssima a figura de um instrutor, preceptor ou “amigo” espiritual,
denominado lama (ou bla-ma, em tibetano), cuja denominação
no Ocidente foi popularizada como monge. Ou seja, é alguém que já passou por um
longo aprendizado e treinamento e que ao se qualificar, recebe a autorização
para que possa repassar tudo aquilo que sua linhagem espiritual desenvolveu.
Do ponto de
vista teórico (ou ao menos naquilo que os ocidentais denominam como tal),
existem tipos diferentes de textos que auxiliam os budistas a trilhar o
caminho. Em primeiro lugar, os chamados cânones dos discursos proferidos pelo
Buda e que foram, depois de sua morte, transcritos em diversos idiomas, seja o
próprio sânscrito, o tibetano, o chinês ou japonês. É preciso dizer, também,
que nunca houve (assim como não há) a pretensão ou mesmo intenção de se querer
unificar o Budismo sob a égide de um único texto sagrado o que, aliás, lhe
confere uma característica bastante peculiar. Os cânones compreendem não apenas
um conjunto de doutrina em seu sentido restrito mas também textos com
finalidade tipicamente normativa, a fim de estabelecer a conduta da comunidade
dos monges, além de grandes trabalhos de exegese e cujo valor sagrado não se
discute.
[1] CORNU, Philippe. Diccionario
Akal del Budismo. Madrid: Ediciones Akal, 2004, Diccionarios Akal 40.
[2] HUMPRHEYS, Christmas. O budismo e o caminho da vida.
São Paulo: Cultrix, 1997.
[3] NAGARJUNA. Carta
a um amigo. São Paulo: Palas Athena, 1994.
[4] DAVID-NEEL, Alexandra. O Budismo do Buda. 2. ed. São Paulo: IBRASA, 2005.