domingo, 17 de novembro de 2013

Perceber...


A experiência humana tem indicado, ao longo de milênios, que a marca da insatisfatoriedade, uma constante na vida de qualquer pessoa, pode converter-se em excelente guia para uma existência mais significativa. Como podemos definir o conteúdo daquele termo, o qual poderia, grosso modo, equivaler a “desejo”? Por um lado, aliada à noção de que a realidade externa ao indivíduo assim como seus conteúdos internos estão em inexorável transformação, deve-se perceber também que nossa mente, a todo o momento e incansavelmente, fica “exigindo-nos” mais e mais, ou, em outras palavras, há um fluxo constante de desejos que, por não serem “satisfeitos”, nos dá a sensação de que “algo falta”, ou seja, há uma inequívoca insatisfação.
Várias seriam as razões pelas quais tal estado insatisfatório se estabelece e que às vezes é generalizado, permeando todos os aspectos da vida de uma pessoa, seja na profissão, nos relacionamentos amorosos, entre outros. O que (nos) leva a essa constante noção de “falta”, “ausência” ou “não completude”? Recentemente, uma grande rede de supermercados apresentou um comercial de televisão que inicialmente faz uma pergunta “o que te faz feliz?”, apresentando imagens de várias pessoas sorridentes ao lado ou utilizando coisas, as quais, evidentemente, poderiam ser compradas (nos referidos estabelecimentos comerciais).
A situação acima deliberadamente foi mencionada para, inevitavelmente, nos levar a uma brevíssima ponderação sobre “isso” que chamamos de felicidade. Paramos por aqui. Felicidade não é um conceito. É algo de natureza, segundo entendo, absolutamente experimental ou, por outro lado, obtido a partir da mais pura vivência. E aqui vai uma sugestão: enquanto Você ACHAR que “um dia” será feliz, assim ficará! Isso porque a (in)satisfação se estabelece justamente porque projetamos, para fora de nós, esse sentimento de felicidade, sendo que, em última instância, é uma ocorrência totalmente interna, não dependente de algo (ou alguém) que não seja Você mesm@.
Sendo assim, insatisfeito em um ou alguns ou mesmo em quase todos os aspectos da existência, se pode estar diante de uma pessoa que literalmente está “morta” para uma determinada vida, ou seja, sequer percebeu sua própria condição enquanto humana, ou mesmo quais as suas possibilidades para que contribua não apenas para que supere suas dificuldades e assim veja que sua situação pode se transformar ou melhorar (do ponto de vista material, espiritual, moral, entre outros), mas também quanto a sua inserção na comunidade que faz parte. 
Perdida na vastidão de sua mente, uma pessoa poderá passar toda uma vida sendo escrava de seus próprios desejos que, se insatisfeitos, poderão trazer sofrimentos dos mais variados matizes. Uma das grandes questões é também saber como lidar com o sofrimento, e é justamente para desenvolver uma estratégia para percebê-lo e eliminá-lo que muitas tradições espirituais, filosofias e, no ocidente, vários nichos terapêuticos propõem uma série de treinamentos. Mas não basta apenas perceber e lidar com o sofrimento (“falta de felicidade”?). Cabe, a tod@s nós, superá-lo. Seja feliz...

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Brasileiras e Brasileiros....



DEFINITIVAMENTE, enquanto nós, Brasileiras e Brasileiros, não mudarmos RA-DI-CAL-MEN-TE nossa postura COLETIVA de convivência, não temos (ou teremos) a MENOR legitimidade para qualquer manifestação desqualificativa do país em que vivemos. Todas as vezes que ando pelas ruas e vejo: 1) motoristas que se LIXAM para pedestres e LITERALMENTE avançam em cima deles ou delas, em nome de "não perder tempo" ou "Você, pedestre (ou ciclista), está me 'atrapalhando'"; 2) pessoas furando fila sem o MENOR peso na consciência, porque "meu amigo/minha amiga está ali na frente"; 3) reclamações que o "governo isso", "governo aquilo", mas é INCAPAZ de solicitar que se refaça a conta no restaurante porque ela veio A MENOS e se gastou A MAIS; 4) o MAL-DI-TO "jeitinho brasileiro" em ação; 5) o MAL-DI-TO "tenho que me dar bem", sem SEQUER se dar conta que o "me dar bem" NECESSARIAMENTE implica no "se dar mal" na comunidade (planeta, meio ambiente - ou tudo junto)....
Ao ver TODAS essas práticas, isoladas ou em conjunto, entre tantas outras, fica CLARO para mim que ainda temos muito, MUITO que avançar enquanto NAÇÃO, enquanto COMUM-UNIDADE que DE FATO E DE DIREITO queira o bem a TODAS as filhas e a TODOS os filhos deste território que chamamos Brasil. CONTRARIAMENTE ao que diz a propaganda do Partido dos Trabalhadores, representado pela atual Presidenta, país “rico” NÃO É aquele em que não há pobreza, mas aquele em que TODAS e TODOS, de FATO e de DIREITO, são co-autores/co-autoras e coadjuvantes na produção e DISTRIBUIÇÃO E DA RIQUEZA. NÃO ME VENHA com essa BALELA de dizer que “não temos maturidade” para viver uma EFETIVA, uma “REAL” democracia. Poderia, TALVEZ, concordar que não tenhamos é VONTADE de arregaçar as mangas e fazer as DEVIDAS escolhas ou, então, fazer as DEVIDAS negações. 
Por exemplo: por que continuamos a adquirir produtos de sociedades empresárias que RECONHECIDAMENTE fazem testes ABSOLUTAMENTE cruéis e/ou desnecessários em animais? Ou seja, fontes CONFIÁVEIS demonstram que é possível utilizar QUALQUER outra forma de teste que não seja nas criaturas que chamamos “bichos”. Isso é APENAS um exemplo. Sociedades que vêm se formando há mais de três mil anos já passaram por INÚMERAS situações de TOTAL crise, fome, guerras internas (e externas), decapitações e tantos outros horrores e vários outros flagelos e, nós, Brasileiras e Brasileiros achamos isso altamente “heróico” ou “bonito” ou “inspirador”. Mas na PRIMEIRA oportunidade que temos de rechaçar as mazelas em nosso país, fazemos CORPO MOLE. Isso mesmo: CORPO MOLE diante das conseqüências. Estamos dispost@s a ficar quatro ou cinco horas num fila para comprar um novo (e “maravilhoso” e “ultra-super-mega moderno”) aparelho eletrônico, mas ficamos indignad@s quando temos que esperar (no máximo) dois minutos dentro de um carro porque um grupo de “gente que não tem o que fazer” está compondo um comboio de cem ciclistas, à noite, que pedalam na frente do meu “maravilhoso” (ultra-super-mega moderno) veículo. Pois é....somos Brasileiras e Brasileiros....Somos?????

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ode às Pessoas Extraordinárias





Raras serão as vezes que Você encontrará esse tipo de pessoa. Como a própria aglutinação indica, são aquelas que de tão fantásticas (totalmente fora do ordinário), pela inteligência, capacidade afetiva, conhecimento, entre vários outros atributos, reunidos ou isolados, fazem (e muito!) com que qualquer sofrimento possa “valer a pena”. Fazem com que qualquer encarnação torne-se uma bênção, por mais tormentosa ou angustiante que pareça. Pessoas extraordinárias são aquelas que pediríamos para acompanhá-las a uma guerra, a Timbuktu, ao inferno ou simplesmente para tomar um sorvete. Não apenas porque suas presenças nos proporcionam boas risadas ou uma profunda sensação de paz. Tais criaturas literalmente iluminam nossos caminhos, literal e diretamente contribuem para a (radical) e efetiva transformação enquanto seres humanos.
Podemos chamar tais pessoas de “mãe”, “amigo”, “prima”, “tio”, “colega de trabalho” ou qualquer outro substantivo. Em outros casos, e de modo bizarro (?), aquelas que mais consideramos como improváveis são as mais extraordinárias. Um(a) “inimigo(a)”, um(a) “desafeto(a)”, bem como qualquer outro desqualificativo pode se tornar o(a) grande Mestre(a) de uma existência. Como disse, foram (e são) bastante escassos os encontros com tais personagens, e algo que nos leva a confirmar isso é o fato de que, contrariamente ao que a lógica pós-moderna do capitalismo diz[1], o que tais pessoas fazem por e para nós não somente é único mas vai ao encontro de nossos espíritos, dizendo: “Aqui estamos para tornar o nosso encontro algo que perdurará pela eternidade”.
Tais pessoas podem ser consideradas, até, “loucas”, por todos(as) aqueles(as) satisfeitas com o famoso “pacto da mediocridade”[2] só que, no fundo, é a LUZ interna de tais pessoas que mais brilha, quando a escuridão é mais presente. São aqueles(as) que não teríamos o MENOR medo em saltar na frente para salvá-lo(a) de um atentado, porque consideramos sua intervenção como epifânica ou algo parecido. As pessoas extraordinárias não necessariamente são “boazinhas”[3]. Elas são justas. Suas atitudes nos indicam, isso sim, que rumo tomar. Sua maneira de pensar e falar nos colocam diante de um novo “conceito” imanente-transcendente de sentir. E já aviso: tais pessoas nada tem a ver com tradições espirituais, ideologias ou filosofias[4]. Sua mera presença define uma situação absolutamente inusitada em nossas vidas.
Pessoas extraordinárias tem um profundíssimo senso prático para enfrentamento de dilemas ou dramas existenciais. Não se chafurdam em delírios acadêmicos e/ou conceptuais, visto que tem a mais nítida percepção de que a vida não é um esquema “ideal” ou “perfeito”, mas algo tão simples quanto beber um copo d’água. Farão escândalo apenas para lhe gritar (ou sussurrar) que continua praticando os mesmos erros e poderão nem estar na primeira fileira quando Você for condecorado(a). Aliás, pessoas extraordinárias tem uma certa ojeriza de aglomerações glamorosas. Geralmente nos fornecem os maiores ensinamentos no tête-à-tête, quando precisamos ouvir o que é necessário, e não apenas o que desejamos.

Já encontrou alguém assim? Se não, é porque sua oportunidade cármica ainda não lhe concedeu essa benesse. Se sim...tenha gratidão ao Universo, pois acaba(acabou) de acontecer um milagre em sua vida. E sejam felizes...


[1] “Não existe pessoa insubstituível” ou o que o valha.
[2] Eu finjo que sou verdadeiro contigo e Você finge que acredita nisso.
[3] Até porque teríamos que elaborar um tratado filosófico para conceituar ou fazer uma aproximação epistemológica acerca do bem (e do mal, claro).
[4] Ou seja, tais pessoas nãaaaaaaao necessariamente são monges (ou monjas), pastores (ou pastoras), padres, pais (ou mães) de santo ou qualquer outro tipo de liderança espiritual ou filosófica. 

domingo, 20 de outubro de 2013

Ode pragmática...



Como qualquer outra pessoa, passamos por dificuldades. Passamos por momentos felizes. Defendemos um direito (ou uma razão) e, às vezes, vamos às últimas conseqüências por isso. Entregamos os pontos. Xingamos muito (lamentamos e recitamos poemas). Pagamos contas e, por acharmos que vamos dar contas, fazemos outras (e depois colocamos a mão na cabeça pensando na besteira que fizemos). Encontramos o "amor da vida" para perceber que, no fundo, temos que ter MUITO amor à (nossa própria) vida. Descobrimos a perfeita (e/ou complexa) “fórmula” para a felicidade sem nos darmos conta de que a existência SEMPRE nos ensina da maneira mais simples. Reverenciamos facínoras, assassinos e bestialidades como “heróis da pátria” e quase sempre SEQUER lembramos da existência daqueles/as que MAIS fizeram de suas trajetórias a mais explícita mostra de compaixão. Fazemos maldades por querer e bondades sem querer e nem por isso somos “melhores” ou “piores”. Somos human@s, demasiadamente human@s, como dizia Nietzche. Temos uma lista de afazeres “importantíssimos” e constatamos que, no fundo, é a PRIORIDADE/NECESSIDADE que mais nos induz a agir. Conseguimos dizer não mil vezes para fazer uma doação a quem vive de mendicância e gastamos dinheiro impensado com coisas que muitas vezes jogamos fora. Não nos satisfazemos. Nunca. E lamentamos nosso próprio apego. E lamentamos nosso sofrimento. E lamentamos nossa dor. Não superestimamos nossa alegria. Não subestimamos a capacidade da própria ilusão. O quê queremos da vida? Como encaramos a morte? Quem nos tornamos? Muitas perguntas neste texto? (Não) Deixe de fazer uma delas. E seja....feliz....

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Poder, um saco de sal e viagens


Poder, um saco de sal e viagens

O autoconhecimento é daquelas tarefas ou encargos, senão a mais árdua e intrigante em todas as existências, com certeza uma das que implica em necessidades e exigências de diversos matizes. Refiro-me à enorme quantidade de tempo, dinheiro, energia, entre outros aspectos, que somados nos possibilitam desenvolver uma percepção e/ou consciência mais profunda do que significa “isso” que denominamos “eu”. Sobre esse último, talvez fosse importante tecer alguns comentários, a fim de fazer uma ligação com o título deste texto. É interessante observar que o ocidente sempre manteve, ao menos como princípio ou hipótese inicial de investigação do mundo e da própria raça humana a ideia de pessoalidade, ou seja, a “existência” de um “eu” e um objeto dissociados e absolutamente distintos e esta é noção clássica da relação de conhecimento. 

Basta transcrever alguns exemplos para que se tenha uma idéia do que está sendo dito. Partindo da filosofia, uma primeira aproximação de um conceito do eu é sugerida por ABBAGNANO (2003, p. 388) ao dizer que “esse pronome, com que o homem se designa a si mesmo, passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento em que a referência do homem a si mesmo, como reflexão de si ou consciência de si foi assumida como definição do homem”, apresentando, ainda, quatro possíveis interpretações para tal termo, a saber:

a)   consciência, relação consigo mesmo ou subjetividade, que pode ser vista no projeto filosófico cartesiano;

b)   unidade ou identidade, sendo a consciência que funda a identidade pessoal, conceito defendido por John Locke;

c)   autoconsciência como unidade da percepção pura, para Kant;

d)   a diferenciação do eu enquanto consciência (como quando se diz “eu sou”) e a personalidade que inclui zonas de ignorância mais ou menos voluntárias (e o exemplo disso é enquanto se está dormindo).[1]
  
Já Platão, em seu Sofista, define provisoriamente que:

O que naturalmente traz em si um poder qualquer ou para agir sobre não importa o quê, ou para sofrer a ação, por menor que seja, do agente mais insignificante, e não por uma única vez, é um ser real; pois, afirmo, como definição capaz de definir os seres, que eles não são senão um poder (...) Mas pela alma, por meio do pensamento é que estamos em comunhão com o verdadeiro, o qual, dizei vós, é sempre idêntico a si mesmo e imutável; enquanto que o devir varia a cada instante.[2]

Explicitamente, é legítimo dizer que o self como objeto de estudos e reflexões filosóficas, teve no pensamento de René Descartes (1596-1650) e no próprio racionalismo um de seus marcos históricos. Isto porque o argumento do cogito (cogito, ergo sum – “penso, logo existo”), em que pesem suas limitações e dificuldades epistemológicas, expõe claramente uma das preocupações de Descartes, a saber, a fundamentação do conhecimento humano por meio da dúvida metódica, que teve em outros autores a radicalização do ceticismo. Ao dizer “penso”, evidentemente Descartes teria que definir quem ou o quê pensa, ou seja, o sujeito do ato de pensar; o quê é pensado, ou seja, o conteúdo do pensamento ou aquilo para o qual o pensamento é dirigido; para quê, ou seja, a finalidade do pensamento, entre outros. E isso foi feito em vários dos seus escritos.

Falei disso tudo para transitarmos para um assunto correlato: o conhecimento da outra pessoa, ou seja, de modo genérico e particular, aquelas com as quais nos relacionamos diuturna, profissional, espiritual, emocional e/ou pessoalmente. Se o autoconhecimento já é uma árdua tarefa, o que dizer de tentar perceber ou conhecer o(a) outro(a)? Definitivamente, não considero legítimas perguntas ou cobranças do tipo “como você não me conhece?” dirigidas de um(a) parceiro(a) a outro(a). Isso porque, seguindo um princípio (ou lei) de total, de absoluta impermanência da realidade fenomênica, no mínimo seria incongruente (ou impossível) exigir que alguém se mantivesse física, mental e emocionalmente exatamente o(a) mesmo(a) ao longo de uma vida. Sendo assim, minhas experiências me levaram a elaborar maneiras (fáceis?) de se perceber com que tipo de pessoa se está lidando. Seguem, então, minhas sugestões.

A primeira (e melhor?) forma de se saber com que tipo de ser humano se está lidando é, paradoxalmente, a mais evidente: observe, muito atentamente, como (re)age alguém que tenha poder (ou pelo menos que acha que tem). É muito comum, hoje em dia, rebatermos na internet uma frase, supostamente atribuída a Abraham Linconl (ou Maquiavel?), a qual possui mais ou menos o seguinte conteúdo: “quase todos os homens são capazes de suportar adversidades, mas se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”. Pois bem. Apenas para que seja colocado um norte no que entendo por este termo (poder), segue um bom entendimento com o qual concordo, fornecido por LEBRUN (2001, p. 20):

O poder não é um ser, ‘alguma coisa que se adquire, se toma ou se divide, algo que se deixa escapar’. É o nome atribuído a um conjunto de relações que formigam por toda a parte na espessura do corpo social (poder pedagógico, pátrio poder, poder do policial, poder do contra-mestre, poder do psicanalista, poder do padre, etc, etc) (...) Quando a questão é compreender como foi e continua sendo possível a resignação, quase ilimitada, dos homens perante os excessos do poder, não basta invocar as “disciplinas” e as mil fórmulas de adestramento que, como mostra Foucault, são achados relativamente recentes da modernidade. Sua origem e seu sucesso talvez se devam a um sentimento atávico dos deserdados, de serem por natureza excluídos do poder, estranhos a este (...) Ainda que o poder não seja uma coisa, ele torna-se uma, pois é assim que a maioria dos homens o representa.[3]

Ou seja: observe, muito atentamente, uma pessoa e o que ela faz, como lida, quando e como utiliza o poder, seja ele de que espécie ou tipo for, para que Você tenha um excelente parâmetro de avaliação do tipo de ser humano está à sua frente. Claro que essa, digamos, “investigação” pode ter falhas ou levar um bom tempo. Mas é bem válida, considerando que toda forma de poder é também uma das maneiras como se relaciona com a própria existência. Passemos à segunda “boa” alternativa de se conhecer a outra pessoa. E é ótimo, porque se passa de um plano, às vezes totalmente subjetivo ou teórico, para outro, de natureza totalmente pragmática: se quer distinguir uma pessoa de outra, divida com ela um saco de sal.

Dito de outra forma: compartilhe, com outra pessoa, a maior dificuldade que tiver na vida, para ver como responde e o que faz (qual é a atitude) dela, diante de situações ou momentos de extremo estorvo. Perante a morte, a pobreza (material, psicológica, emocional), a doença. Justamente em tais condições é que, talvez, melhor se tenha plena capacidade de perceber quem é (ou o “qual” é) a criatura com quem nos relacionamos. E um (hipotético e) simples (dramático?) exemplo é suficiente para demonstrar isso: diante da situação extrema em ter que literalmente sacrificar a própria vida para salvar uma pessoa totalmente estranha, o que fazer?

Claro que ninguém faria isso, não é verdade? Errado! Muita gente faz isso. Exemplo? Pessoas que trabalham como Bombeiro(a). “Mas eles/elas são pagos(as) para realizar o trabalho, oras”, diria Você. Até concordaria com a afirmação, se me respondesse de modo inquestionável o por quê tal pessoa escolhe uma profissão/atividade que, além dos riscos inerentes, pode chegar a ponto de ter que doar-se de modo absoluto para que outra, a qual sequer se conhece, possa sobreviver. Consegue elaborar tal explicação? 

Finalmente, uma das maneiras interessantes de se conhecer alguém é, literalmente, viajar com ela. Ao sair da “zona de conforto”, uma pessoa é capaz de agir de maneira muito “verdadeira”. É muito provável que o leitor ou a leitora desse texto já tenha passado por esse tipo de, digamos, ensaio. Se não, experimente


[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003
[2]PLATÃO. Sofista. In: Diálogos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)
[3] LEBRUN, Gerárd. O que é poder. 3ª reimp. da 14ª ed. de 1995. São Paulo: Brasiliense, 2001. Coleção Primeiros Passos, vol. 24


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Impermanência



Anitya, Dukkha e Anatman

Um rápido exercício de observação é suficiente para constatar que a realidade apresenta uma característica incontestável: a impermanência ou transitoriedade que, em sânscrito, é nomeado como anitya. Das partículas constitutivas do átomo ao universo da antimatéria, se pode perceber a inexorabilidade da transformação, ou seja, o fato de que toda a existência está submetida a um eterno processo de mudança. É bem conhecida, no mundo ocidental, a afirmação de que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, atribuída ao químico francês Lavoisier (1743-1794). Ao concluir que nas reações químicas estava presente um princípio, posteriormente nomeado de conservação da matéria, o cientista trouxe à tona um dado que há pelo menos 2500 anos já era proposto pelo Budismo.

Igualmente não é difícil perceber que qualquer ser vivo está submetido à sucessão do nascimento, crescimento, desenvolvimento, velhice e morte. Se aplicada aos grupos humanos, pode-se perceber que estes também estão inseridos na roda do samsara[1] pois ao longo de suas existências, infinitas atitudes, palavras e pensamentos individuais e coletivos são gerados, com suas respectivas conseqüências. É preciso esclarecer que tudo o que se faz, pensa ou fala em qualquer momento não é único problema quanto à elaboração do karma, seja positivo ou negativo. A dificuldade também está em se perceber a totalidade na qual cada indivíduo (de uma comunidade, um país, um planeta, um sistema solar) está inserido

Retomando o ponto inicial, à medida que se vai percebendo a impermanência da realidade, muito já se pode fazer quanto à mudança de comportamento individual e, porque não dizê-lo, coletivo. Isto porque, em parte, o sofrimento da grande maioria dos seres reside, entre outros, no fato de não perceber que os estados experimentados por cada indivíduo, além de serem únicos, são transitórios, passageiros e, por mais “reais” que possam parecer assim o são naquele momento, e certamente não o serão posteriormente. Tomando como exemplo os líderes de alguns povos, percebe-se facilmente que bastou uma revolta popular, ou mesmo uma conspiração entre os comandados de Júlio César (100-44 a.C.), para que seu “poder”, considerado “infinito” ou “absoluto”, fosse colocado em seus devidos parâmetros, a saber, restrito a determinada circunstância histórica, limitado e ambicioso.

Assim, percebemos que somos regidos por um princípio de eternas alterações, mudanças contínuas, desde o mau-humor matinal à euforia por derrotas profissionais, passando por decepções amorosas, e isso apenas do ponto de vista psico-emocional. Da mesma forma, o organismo vai acompanhando a transitoriedade da vida, fazendo trocas gasosas, repondo e aniquilando células, entre outras transformações que nada mais refletem esse caráter de eterna mutação interna e externa. Ou seja: “nada é eterno” e a vida é uma sucessão de acontecimentos por sua vez seguidos por outros, e nomeá-los “bons” ou “ruins” é uma questão de percebê-los de uma ou de outra maneira, pois o rótulo que se atribui às coisas, pessoas ou situações depende também e em grande parte do modo como lidamos conosco e da perspectiva na qual aqueles eventos são encarados.

Vista esta primeira característica, pode-se complementá-la com outra que diretamente concorre para a produção de estados de desequilíbrio da mente, a saber, a insatisfação ou dukkha. A palavra sânscrita dukkha é geralmente traduzida como sofrimento, isto é, desarmonia entre o eu pessoal e o mundo real não-condicionado. Mas estas noções, segundo SILVA (2002, p. 40):

são insuficientes e enganadoras. Admite-se que o termo dukkha possa ser empregado como enunciado da Primeira Nobre Verdade, significando Sofrimento, porém nele estão implicadas noções mais profundas e filosóficas, entrelaçadas entre si, de impermanência, insatisfatoriedade, imperfeição, conflito, não-substancialidade ou impessoalidade (inexistência de uma individualidade eterna e imutável, a ilusão de um eu substancial). Por esta razão, torna-se difícil encontrar uma expressão, em qualquer língua ocidental, que abranja todo o conteúdo do termo dukkha. Por conseguinte, é melhor abster-se de traduzir dukkha, do que arriscar-se a dar uma interpretação inadequada e falsa como a de sofrimento ou dor.[2]


Aliada à noção de que a realidade externa ao indivíduo assim como seus conteúdos internos estão em inexorável transformação, deve-se perceber também que nossa mente, a todo o momento e incansavelmente, fica exigindo-nos mais e mais ou, em outras palavras, há um fluxo constante de desejos que, por não serem satisfeitos, dá a sensação de que “algo falta”, que existe uma inequívoca insatisfação. Várias seriam as razões pelas quais tal estado insatisfatório se estabelece e que às vezes é generalizado, permeando todos os aspectos da vida de uma pessoa, seja na profissão, nos relacionamentos amorosos, entre outros. Por sua vez, estes últimos estão inseridos num conjunto maior, integrante do universo de informações constituintes da mente de uma pessoa e que também é elaborado por meio de diversos mecanismos, entre eles, a educação. 

No Ocidente, de um modo geral, o conteúdo educacional transmitido à criança pelos pais (e também pela educação oficial ou estatal) é repleto de uma série de conteúdos que dizem respeito às mais variadas áreas da relação interpessoal e/ou intelectual: moral social, regras de convívio, noções de justiça, autodefesa, religião, cultura, ciências, entre tantas outras. Mas não é comum encontrar um contexto pedagógico que se preocupe em dialogar, por exemplo, sobre questões filosóficas e práticas acerca da vida ou mesmo reflexões profundas sobre a própria existência. A morte, por exemplo, é um daqueles temas que freqüentemente povoam (e talvez atordoem) a mente ocidental, por vários motivos. Por outro lado, a morte pode ser encarada de maneira absolutamente diferenciada, como a que nos propõe Kalu RINPOCHE (1999, p. 312), pois:

mesmo para um praticante o processo todo de morrer pode ainda ser vivido com sofrimento, já que perder o corpo e esta vida pode ser uma experiência muito difícil. Mas se tivermos recebido instruções sobre o significado da morte, saberemos que existe uma enorme esperança no momento em que a Luminosidade Base surge no momento da morte. No entanto, resta ainda a incerteza de se vamos reconhecê-la ou não, e por isso é tão importante estabilizar o reconhecimento da natureza da mente pela prática enquanto ainda estamos vivos.[3]

Com poucas exceções, este é um dos assuntos que ainda (e muito) incomodam, amedrontam e são praticamente relegados ao um plano, por assim dizer, de somenos importância por parte de algumas das religiões ocidentais, quanto à sua discussão e compreensão, ao menos de maneira explícita e pública. Questões como “o que é amar”, “o que é a felicidade”, “o que sou”, “o que é viver e morrer”, “qual a relação entre os que estão mortos e os vivos”, “o que ocorre durante e após a morte”, entre várias outras, em raríssimos casos são tratadas a contento em debates que atingem grandes audiências. Tudo isto foi dito por que são assuntos que senão constantemente, ao menos num determinado momento da vida de cada indivíduo, aparecerem como que para “provocar” a imaginação, a curiosidade, mas principal e talvez infelizmente, evidenciar o despreparo que se tem diante do fato de que todos os seres, de um ou de outro modo, irão morrer.

Algumas experiências como a felicidade, por exemplo, por mais que se queira conceituar ou discutir, ao final são individuais. Só que, repita-se, não fazem parte das conversas cotidianas, nem fazem parte de muitos cursos regulares nos meios acadêmicos, assim como a engenharia civil ou a medicina, salvo, se o caso, em cursos como os de Filosofia, Psicologia ou como cursos de extensão. Ao não tratar explicitamente de tais assuntos, o homem ocidental é orientado por e para temas que, apesar de sua importância, ainda não são suficientes para dar um sentido de complementaridade à vida ou, mesmo, algo que responda a uma série de questionamentos metafísicos.

Em essência e em última palavra, os temas dirigem-se a outro que, para o Budismo, deve ser tido como um dos principais “objetos” de investigação por parte do(a) praticante, a saber: a mente. Pois é esta última que sempre está em constante inquietação, em frenética atividade, produzindo uma infinita cadeia de pensamentos como “sou competente”, “preciso comer”, “vou matá-lo”, entre incontáveis outros[4]. E é uma atividade tão intensa que sequer percebe-se a quantidade ou mesmo a natureza de todo o material mental elaborado. Apenas para ilustrar tal gigantismo, um exercício interessante seria a contagem de todos os pensamentos que um indivíduo comumente realiza durante apenas uma hora. Somente neste período, já seria possível enumerar centenas deles.

De todo o material produzido pela mente, entre outros elementos, observa-se o desejo. Associados a este, estão a satisfação e a insatisfação. E é justamente em cima desta polarização que a mente trabalha rotulando como (parcialmente) “satisfeito” ou “insatisfeito” determinado desejo. Percebe-se, então, que toda esta atividade requer ou demanda uma imensa quantidade de energia, pois incansavelmente o ser humano é conduzido por seus próprios desejos, não concedendo tempo ou momento para que a mente descanse ou mesmo pare de emitir pensamentos. Isso pode causar um profundo desgaste mental, a ponto de levar a pessoa à exaustão e, em casos mais graves, a um completo desequilíbrio, passível de tratamento terapêutico.

Dessa forma, insatisfeito em um, alguns ou mesmo em quase todos os aspectos da existência, se pode estar diante de um indivíduo que literalmente está “morto” para uma determinada vida, ou seja, sequer percebeu sua própria condição enquanto humano, ou mesmo quais as suas possibilidades para que contribua não apenas para que supere suas dificuldades e assim veja sua situação melhore (do ponto de vista material, espiritual, moral, entre outros), mas também num conjunto mais amplo. Perdido na vastidão de sua mente, uma pessoa poderá passar toda uma vida sendo escravo de seus próprios desejos que, se insatisfeitos, poderão trazer sofrimentos dos mais variados matizes. Uma das grandes questões é também saber como lidar com o sofrimento, e é justamente para desenvolver uma estratégia para percebê-lo e eliminá-lo que o Budismo propõe uma série de treinamentos. Em última instância, faz parte do objetivo de todos os budistas, eliminar toda forma de sofrimento.

Vistos a impermanência e a insatisfatoriedade, o último componente de dukkha satya para a doutrina budista é a impessoalidade, talvez o de mais difícil compreensão e/ou aceitação por parte do homem ocidental. Isto porque, em regra, ele sempre manteve a tendência de investigar e identificar o ente ou o ser não apenas do próprio homem, mas também de todas as experiências do mundo fenomênico, tanto material quanto ideal. Tal tradição já estava presente desde a filosofia platônica e, ao longo dos séculos, foi reforçada veementemente, a ponto de mais recentemente levar pensadores do quilate de Martin Heidegger elaborarem em seu Ser e tempo uma doutrina muito bem estruturada sobre a questão ôntica e ontológica do ser. Como conseqüência, o ocidente manteve a quase obsessão de privilegiar o indivíduo (ego) como centro das atenções e em inúmeros momentos da historiografia ocidental, o homem procurou revitalizar a noção egóica, além de ampliá-la.

Para o Budismo, como premissa, o universo material e imaterial não possui uma substância ou essência intrínseca, absolutamente independente ou dissociada de tudo e de todos, dito anatman. Isto quer dizer que a ocorrência de todos os fenômenos de ordem material ou mental depende ou necessita de condições prévias, sem as quais não haveria a própria ocorrência fenomênica. Essa afirmação está em direta ligação com o primeiro aspecto da realidade, já visto, ou seja, a impermanência de todos os fenômenos complementa-se com o fato de que não há uma substancialidade do que quer que seja. Isso porque, não havendo qualquer ocorrência intrinsecamente permanente, é também razoável perceber que não há uma “essência” subjacente a toda realidade. Existem alguns bons argumentos para tal afirmação. 

Em primeiro lugar, é preciso perceber que fundamentalmente tudo o que tem existência assim o é em função de sua interação com outras forças ou ocorrências. Não haveria sentido na existência de um “algo” se o mesmo não interagisse com tudo o que lhe circunda. Por esse raciocínio, só se pode falar da existência de “algo” ou, numa linguagem heideggeriana, de um “ente” ou de um ser, se for pensado ou percebido em relação com outros seres ou entes. Dito de outra forma, a existência pressupõe uma relação de pertinência a um contexto com outras existências, com outros seres e, por isso, não haveria sentido em falar de um ser, de um “algo” absolutamente solto, isolado, sem qualquer relação com outros seres.

O Budismo propõe que “tudo” no universo não tem uma essencialidade, não tem uma realidade em si mesmo, mas depende de uma série de circunstâncias para que possa vir à existência. Assim se processa a existência do mundo, do homem, enfim, do conjunto fenomênico. Se for perguntado, por exemplo, o quê é uma pessoa, é possível uma série de respostas, e isto somente se for considerado o conhecimento humano. Assim, a Psicologia fornecerá uma abordagem, que possivelmente será diferente da Biologia e assim sucessivamente ocorrerá com a Teologia ou Filosofia.

O homem é espírito? É mente? Sangue, ossos e músculos? O homem é um complexo consciente? Todas estas respostas podem ser consideradas verdadeiras para um indivíduo enquanto vivo, evidentemente, se tomada uma determinada perspectiva, mas não conferem suporte satisfatório a outras questões: ao morrer, o que “é” ou “em quê” se transforma o homem? Decorrente dessa surge outra: como pode a pessoa, ao morrer, ser algo essencialmente diferente do que era em vida? Valendo-se da lógica platônica e (talvez) cartesiana, se algo “é” (ou seja, se não se trata de uma essência, por assim dizer, “circunstancial”) não poderia deixar de sê-lo simplesmente em função de um evento que, se sabe, faz parte da própria condição existencial. Ou seja, se o homem possui um espírito que é sua “essência” (ou seja, independe de outros fatores), como poderia deixar de sê-lo ao morrer?

Por tais questionamentos, é possível perceber que a lógica utilizada no Ocidente não é suficiente para conferir sentido às respostas tradicionais. A ocorrência de tal fato se deve em parte ao considerar que, para o Budismo, não há essencialmente um “eu”, não há um ente intrínseco e absolutamente dissociado de tudo, o qual se possa dizer “da pessoa” ou que seja inerente à natureza das coisas. Tudo o que vem à existência, seja material ou imaterial, depende de uma série de fatores que contribuem para a ocorrência de tais entes.






[1] Eterno ciclo de renascimentos.
[2] SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do auto-conhecimento – o caminho da correta compreensão. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2002.
[3] RINPOCHE, Kalu. Ensinamentos fundamentais do budismo tibetano – budismo vivo, budismo profundo, budismo esotérico. Brasília: Shisil Editora, 1999.
[4] É importante perceber que tais pensamentos são dirigidos ou elaborados ou ainda tratam de um “eu”, ou seja, de um ente para o qual ou ao qual determinado desejo deve ser satisfeito. Ocorre que é justamente tal ilusão que o Budismo diz ser elaborada pela mente. Dito de outra forma, o Budismo propõe que tal ente essencialmente não existe, sendo uma atividade específica de um dos agregados da existência (skandhas), a saber, a consciência.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Medite. Só faz bem.



Ao que tudo indica, a experiência ocidental da meditação sugere que a pessoa deve ficar pensando (refletindo?) sobre determinado assunto até que desenvolva estratégias ou perceba a mecânica para a solução de um problema ou dificuldade, de natureza prática ou teórica[1]. Assim, estaria meditando aquela ou aquele que passa horas (dias, semanas) concentrando sua energia em processos mentais para obtenção de respostas ou esquemas pragmáticos. Grosso modo, e ao menos do ponto de vista mundano, é o que se percebe de tal atividade.
De maneira diferente, e ao menos no que respeita à espiritualidade de algumas tradições orientais, a prática da meditação parte de outros pressupostos ou especificidades. É que, diversamente, não se buscam argumentos ou montagem de estruturas lógicas mas simplesmente um estado no qual os processos racionais não são utilizados, dando lugar a um outro tipo de conhecimento[2], que não é nem “melhor” nem “pior” que o obtido costumeiramente pela chamada “razão”.
Num ou noutro sentido, importa dizer que ao longo de nossas existências, independendo de sua expressão material, submetemos nossas mentes a um infindável processo de agressão, visto que incessantemente, diuturnamente, estamos submetendo o aparelho cerebral a uma rotina de produção de pensamentos e/ou energias. Não nos damos conta de que, como qualquer outro órgão ou sentido, a mente, ao menos do ponto de vista material, está submetida a regras e apresenta características como, por exemplo, o fato de também apresentar cansaço ou exaustão.
Sendo assim, é no mínimo prudente que além de todos os cuidados dispensados aos nossos bens materiais, limpando nossas casas, fazendo revisões em carros, adquirindo novas tecnologias em informática, que tenhamos igual (ou talvez até maior) diligência com nosso arcabouço mental. Dito de outra forma: por que damos tanta importância às coisas se o que efetivamente releva é uma inteligência que as utilizará? Tudo isso foi mencionado para que se possa chamar a atenção para um fato que provavelmente todas e todos já perceberam: ficamos entretidos com nossos pensamentos e sentimentos esquecendo-nos que isso também desgasta nossas mentes.
O que fazer diante disso? Dê um “tempo”. Pare de pensar tanto. Respire. Perceba como outros componentes ou elementos entram nessa equação chamada “vida”. E seja feliz. Muito feliz.



[1] É muito interessante observar, por outro lado, que em alguns textos a prática da meditação compõe os graus de ascensão mística, que por sua vez consiste “essencialmente em definir os graus progressivos da ascensão do homem até Deus, em ilustrar com metáforas o estado de êxtase e em procurar promover essa ascensão com discursos edificantes”, como indica Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de filosofia, Editora Martins Fontes, 2003, p. 672.
[2] Tomando como exemplo a tradição do Budismo, neste se entende que “a compreensão verdadeiramente profunda é conhecida pelo nome de ‘penetração’ e consiste em ver as coisas na sua verdadeira natureza, sem nome nem rótulos, sem conceitos. Essa penetração só é possível quando a mente está livre de todas as impurezas, de todos os condicionamentos e a visão interior foi desenvolvida ao máximo por meio da meditação (...) O objetivo principal da meditação consiste na contemplação ou observação pura (vigilância); compreender a vida e as coisas como elas realmente são, sem ver o bem, sem ver o mal, sem apego, se forem agradáveis ou favoráveis, sem aversão, se forem desagradáveis ou desfavoráveis; enfim, sem condicionamentos, que são entraves à observação pura”, como nos mostra Georges da Silva, em seu Budismo: psicologia do autoconhecimento, Editora Pensamento, 2008, p. 86.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Noções iniciais sobre o Dharma



Este texto tem por objetivo expor sucintamente as principais informações que dizem respeito a um termo que em si mesmo apresenta dificuldades quanto à verdadeira ou profunda compreensão do seu significado. De modo bastante simples, por dharma (em páli dhamma) se pode entender o ensinamento ou o conjunto dos ensinamentos do Buda e o caminho que conduz ao Pleno Despertar. Mas mesmo que se queira tornar o entendimento sobre tal verbete o mais simplificado possível, ainda assim são necessárias palavras adicionais.

É que a raiz sânscrita da palavra, ou seja, dhr, cujo sinônimo é “sustentar”, “apoiar” ou “manter”, significaria que o Dharma é aquilo que sustenta, mantém ou até possibilita a ocorrência da totalidade dos fenômenos. E isso porque quem perceber ou realizar a verdade última deparar-se-ia com a produção de tudo o que há no Universo, seja de natureza material ou mental. Neste particular, é interessante fazer uma brevíssima referência ao Dharmakaya, um dos elementos da (talvez[?] inadequadamente chamada) teoria dos três corpos do Buda.

O Dharma, quando associado à palavra kaya (corpo em sânscrito), revela o chamado Corpo do Dharma ou Corpo da Verdade (Absoluta), revelando a essência da natureza de todos os fenômenos, os quais têm, no conceito do sunyata (ou vacuidade), a inteireza da sua expressão mais profunda. Desta forma, aquele que realiza o estado de Buda apresenta também, como característica, a capacidade de transmitir ensinamentos relativos a tal ou tais conceitos, de modo que o discípulo possa perceber e, se o caso, realizar o Nirvana.

A dificuldade de se estabelecer um conceito do Dharma, majoritariamente aceita, talvez até perdesse um pouco de sentido, visto que a complexidade de seu significado está diretamente relacionada com o grau de entendimento de cada adepto e tal afirmação pode também ter como base os diferentes ensinamentos dados pelo Buda Shakyamuni ao longo dos mais de 40 anos em que permaneceu proferindo seus discursos. Isso porque se diz, dentro do Budismo, que houve três “giros” da roda do Dharma, os quais também corresponderiam ao que posteriormente se denominou como veículos Hinayana, Mahayana e Vajrayana.

Exemplo da diversidade de entendimentos acerca do que é o Dharma é apresentado por CORNU (2004, p. 147), ao dizer:

A palavra dharma possui dois sentidos principais: 1º. o ensinamento do Buda; 2º. os fenômenos, “o que mantém a sua própria identidade”. Mas tradicionalmente se lhe atribuem dez sentidos principais:

1.     Todos os cognoscíveis (SC. jñeya, TIB. shes-bya), ou seja, o conjunto de fenômenos compostos ou condicionados (SC. samskrta, TIB. ‘dus-byas) e de fenômenos não-compostos ou não-condicionados (SC. asamskrta, TIB. ‘dus-ma-byas).
2.     A via ou o Dharma da verdade do caminho.
3.     O nirvana ou “além do sofrimento” (TIB. mya-ngan ‘das-pa) ou Dharma da verdade da cessação.
4.     Os objetos do espírito (SC. manovisaya, TIB. yid-kyi yul), ou seja, os objetos ou fenômenos mentais (SC. dharmāyatana, TIB. chos-kyi skye-mched).
5.     Os méritos (SC. punya, TIB. bsod- nams), ou seja, todo comportamento virtuoso, todo pensamento e ação sadios.
6.     O tempo de vida (SC. āyu, TIB. tshe).
7.     As escrituras do Dharma (SC. dharmapravacana, TIB. gsung-rabs), o Tripitaka, etc.
8.     Os objetos materiais (SC. abhutika, TIB. ‘byung-‘gyur) que surgem dos elementos e se diz sujeitos a transformação.
9.     As regras (TIB. nges-pa), a tomada de votos espirituais.
10.  As tradições religiosas (SC. dharmanīti, TIB. chos-lugs), que englobam as diversas tradições e costumes religiosos do mundo.[1]  
        
HUMPHREYS (1997, p. 71) apresenta um entendimento nada enciclopédico, mas bem personalizado, ao dizer que:

Quase todos os homens têm um “Deus” que confere significado e propósito às suas existências. Tal conceito pode ser produto da criação pela família, pode ser formulado a partir de estudos feitos ou pode ainda ser o remanescente de alguma vida prévia. Apenas os Mestres, Rishis, Roshis, ou que nome tenham, não possuindo a noção de “outro” carecem da necessidade do conceito de Deus em qualquer de suas formas (...) O nome do meu Deus é Dharma. Que significa tal palavra? Seu significado básico é amparar. Outros termos usuais são Lei, Norma, Dever, Ensinamento. No budismo oriental a denominação é Buda-Dharma, ou dhamma na forma Pali. A mim o meu Deus dá uma plataforma que me ampara; dá significado à minha vida, bem como o objetivo e a agenda dessa vida; além disso, os meios de fazer frente à dita agenda e a força para levá-la a cabo.[2]  

O Lama Rendawa, ao comentar o texto de NAGARJUNA (1994, p. 41), expõe de maneira tipicamente doutrinária o entendimento acerca do Dharma, nos seguintes termos:

As virtudes do Darma são as seguintes: “O Darma do Bhagavan é bem-afirmado, capaz de ver com correção, isento de males, eterno, possuidor da transmissão correta, digno de contemplação e próprio para ser compreendido pelos sábios por meio da experiência pessoal”. Em resumo, estas qualidades indicam o Darma dúplice da doutrina e da realização (...) A seguinte citação tirada da escritura Uttaratantra (capítulo 1, estrofe 9) serve como definição do Darma:

Louvor àquilo que não pode ser examinado sob o ponto de vista do seu não-existir, do seu existir, de ambos, nem de outra coisa qualquer que não seja o existir ou o não-existir; que não tem explicação verbal, que deve ser compreendido por cada pessoa; e constitui a paz: o Darma Sagrado, o sol que irradia o fulgor da sabedoria imaculada que sobrepuja o apego, o ódio e a ignorância com relação a todos os objetos.[3]

 
Somente com os elementos acima, é possível uma grande discussão sobre o significado do Dharma. De maneira mais específica, DAVID-NEEL (2005, p. 46) ao falar sobre as Quatro Nobres Verdades, ou seja, o primeiro conjunto de ensinamentos proferidos pelo Buda Shakyamuni, pouco após sua iluminação, diz que:

Absolutamente não nos encontramos diante de um sistema que tem a pretensão de nos esclarecer sobre a origem do mundo e sobre a natureza da Causa Primordial. Não se trata de revelação feita ao homem por uma divindade, nenhuma alusão a um poder extra-humano, nenhuma promessa de ajuda sobrenatural aparecem no discurso do Buda. Trata-se de uma luta do homem contra o sofrimento que o sufoca, de uma luta que ele deve enfrentar só, e da qual ele pode sair vencedor por meios puramente humanos (...)

Na realidade, as Quatro Verdades não exprimem nenhuma verdade, se compreendemos estas palavras em seu significado comum, de fato demonstrado ou revelado. Afora a afirmação da possibilidade, existente para nós, de seremos os próprios agentes de nossa libertação, as Quatro Verdades são apenas a exposição de um método de salvação. O próprio budismo, aliás, não pretendeu jamais ser outra coisa.[4]


Que conjunto de ensinamentos ou caminho foi esse? Seguindo uma didática compatível com o nível de entendimento de cada indivíduo, o Buda Shakyamuni desenvolveu uma pedagogia muito adequada, isso porque, em linhas gerais, se pode dizer que o Budismo estabelece um sistema que auxilia a todos perceberem especialmente a natureza da mente, da sua própria condição e também da realidade, alcançando a auto-realização e eliminação do sofrimento em todas as suas formas, além da superação da cadeia de renascimentos o que é expresso numa palavra por Nirvana (em sânscrito, ou Nibbana, em páli), objetivo de todo praticante.

Quais seriam as bases desse sistema? Do ponto de vista empírico, é inegável que o Budismo apresenta uma forma de constatação cujo método é a incansável observação dos processos e essência mentais, o que é feito por intermédio de uma série de procedimentos ou técnicas. Concomitantemente, se realiza a constante prática do vasto conjunto de ensinamentos. Assim, é importante enfatizar que se trata essencialmente de uma filosofia, modo de vida ou modus operandi nitidamente pragmática, não meramente contemplativa.

Além disso, em algumas tradições do Budismo, em particular nas Escolas do Budismo Tibetano, é importantíssima a figura de um instrutor, preceptor ou “amigo” espiritual, denominado lama (ou bla-ma, em tibetano), cuja denominação no Ocidente foi popularizada como monge. Ou seja, é alguém que já passou por um longo aprendizado e treinamento e que ao se qualificar, recebe a autorização para que possa repassar tudo aquilo que sua linhagem espiritual desenvolveu.

Do ponto de vista teórico (ou ao menos naquilo que os ocidentais denominam como tal), existem tipos diferentes de textos que auxiliam os budistas a trilhar o caminho. Em primeiro lugar, os chamados cânones dos discursos proferidos pelo Buda e que foram, depois de sua morte, transcritos em diversos idiomas, seja o próprio sânscrito, o tibetano, o chinês ou japonês. É preciso dizer, também, que nunca houve (assim como não há) a pretensão ou mesmo intenção de se querer unificar o Budismo sob a égide de um único texto sagrado o que, aliás, lhe confere uma característica bastante peculiar. Os cânones compreendem não apenas um conjunto de doutrina em seu sentido restrito mas também textos com finalidade tipicamente normativa, a fim de estabelecer a conduta da comunidade dos monges, além de grandes trabalhos de exegese e cujo valor sagrado não se discute.



[1] CORNU, Philippe. Diccionario Akal del Budismo. Madrid: Ediciones Akal, 2004, Diccionarios Akal 40.
[2] HUMPRHEYS, Christmas. O budismo e o caminho da vida. São Paulo: Cultrix, 1997.
[3] NAGARJUNA. Carta a um amigo. São Paulo: Palas Athena, 1994.
[4] DAVID-NEEL, Alexandra. O Budismo do Buda. 2. ed. São Paulo: IBRASA, 2005.

domingo, 8 de setembro de 2013

O direito de ação no processo civil




Este texto tem por finalidade expor os principais aspectos do chamado direito de ação no mundo contemporâneo, dentre outros: seu conceito, fundamento e principais consequências práticas e que podem ser observadas pelas pessoas que, eventualmente, precisem se valer daquele instituto. Conceitualmente, ação é o direito, o qual é materializado no processo, que nada mais é do que o instrumento por meio do qual o interessado provoca o Estado para que este exerça a função jurisdicional e possa aplicar ao caso concreto um direito hipoteticamente previsto em lei, o qual foi violado e não recomposto espontaneamente, por intermédio do Poder Judiciário. Formalmente é assim. Ocorre que devem ser considerados outros elementos sobre tal direito (de ação).

É que por ser assim, também é necessário que se tenha em conta a sua natureza, a qual doutrinária e consensualmente se considera como sendo (de): a) um direito público – ou seja, poderá por todos (e pelo próprio Estado) ser utilizado, sendo que suas regras não podem ser objeto de alteração ao bel prazer de quem quer seja, a não ser pelo devido processo legislativo; b) um direito autônomo – quer dizer que o direito de ação independe de haver o chamado direito material[1], ou seja, pode perfeitamente haver ação sem que haja necessariamente a concessão de um direito pessoal, por exemplo; c) direito abstrato – não há qualquer obrigação em ser exercido o direito de ação e ser concedido o direito pleiteado e; d) direito instrumental – o direito de ação, quando materializado no processo, expressa um meio, um instrumento pelo qual se tenta obter um bem da vida.

Tudo isto foi dito para que se entenda o seguinte: quando uma pessoa (física ou jurídica) se dirige ao Poder Judiciário, a fim de pleitear um direito que entende ser devido ou supostamente tenha sido violado, está materializando um princípio constitucional, a saber, o do devido processo legal. Estão inseridos em tal dispositivo[2] da Constituição Federal vários pressupostos, sendo que um dos mais importantes reside no fato de que não basta apenas que exista um enorme conjunto de regras processuais, mas é fundamental que o direito de ação seja útil, no sentido de que ao dar “entrada” numa ação ela atinja efetivamente, concretamente, de modo eficiente os seus objetivos. Isto significa, por sua vez, que ao acionar alguém, o processo tem que ser (ou deveria ser): a) rápido – quanto a seu tempo de duração; b) eficaz – quanto à praticidade e materialidade da decisão proferida por um(a) juiz(a); c) legalmente “viável” – quanto à modernidade das regras processuais.[3]

Nas palavras de BUENO (2011, p. 385), o direito de ação “não se esgota com o ‘provocar’ o exercício jurisdicional, mas, mais amplamente, relaciona-se com o ‘agir’ que se segue àquele ato, com o ‘atuar’ enquanto atua o próprio Estado-juiz em função do rompimento inaugural de sua inércia”[4]. Para que se possa exercitar tal direito, tradicionalmente se entende que são necessárias três condições: a) que o pedido seja juridicamente possível (exemplo: o Código Civil não autoriza que se faça cobrança de dívida de jogo. Tal direito seria juridicamente impossível de ser concedido em eventual ação; b) que haja legitimidade de agir, ou seja, poderá exercer o direito de ação a pessoa que, ao menos em tese, é a titular (é a “dona”) do direito que se pleiteia; c) que haja interesse de agir, ou seja, a pessoa que exerce o direito de ação deve usar do meio processual adequado para tentar obter um provimento jurisdicional a seu favor.







[1] Entendido este como o conjunto de normas que dizem respeito aos bens da vida: corpóreos, incorpóreos, abstratos. Tais direitos estão previstos em códigos tais como o Código Civil, o Código Penal, Código Tributário Nacional, bem como em todas as leis que digam respeito à relação entre tais bens e utilidades da vida. Por outro lado, o direito processual é aquele que disciplina como o processo (civil, penal, tributário, administrativo, entre outros) deve se formar, tramitar e finalizar.
[2] Art. 5º, inciso LIV: “ninguém será privado de sua liberdade nem de seus bens sem o devido processo legal”.
[3] Especialmente pelo fato de que além do princípio do devido processo legal, a Constituição Federal, a partir do ano de 2004, estabeleceu como um direito de todos que haja a “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, inciso LXXVIII; grifamos).
[4] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil – teoria geral do direito processual civil. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, Volume I.