segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Medite. Só faz bem.



Ao que tudo indica, a experiência ocidental da meditação sugere que a pessoa deve ficar pensando (refletindo?) sobre determinado assunto até que desenvolva estratégias ou perceba a mecânica para a solução de um problema ou dificuldade, de natureza prática ou teórica[1]. Assim, estaria meditando aquela ou aquele que passa horas (dias, semanas) concentrando sua energia em processos mentais para obtenção de respostas ou esquemas pragmáticos. Grosso modo, e ao menos do ponto de vista mundano, é o que se percebe de tal atividade.
De maneira diferente, e ao menos no que respeita à espiritualidade de algumas tradições orientais, a prática da meditação parte de outros pressupostos ou especificidades. É que, diversamente, não se buscam argumentos ou montagem de estruturas lógicas mas simplesmente um estado no qual os processos racionais não são utilizados, dando lugar a um outro tipo de conhecimento[2], que não é nem “melhor” nem “pior” que o obtido costumeiramente pela chamada “razão”.
Num ou noutro sentido, importa dizer que ao longo de nossas existências, independendo de sua expressão material, submetemos nossas mentes a um infindável processo de agressão, visto que incessantemente, diuturnamente, estamos submetendo o aparelho cerebral a uma rotina de produção de pensamentos e/ou energias. Não nos damos conta de que, como qualquer outro órgão ou sentido, a mente, ao menos do ponto de vista material, está submetida a regras e apresenta características como, por exemplo, o fato de também apresentar cansaço ou exaustão.
Sendo assim, é no mínimo prudente que além de todos os cuidados dispensados aos nossos bens materiais, limpando nossas casas, fazendo revisões em carros, adquirindo novas tecnologias em informática, que tenhamos igual (ou talvez até maior) diligência com nosso arcabouço mental. Dito de outra forma: por que damos tanta importância às coisas se o que efetivamente releva é uma inteligência que as utilizará? Tudo isso foi mencionado para que se possa chamar a atenção para um fato que provavelmente todas e todos já perceberam: ficamos entretidos com nossos pensamentos e sentimentos esquecendo-nos que isso também desgasta nossas mentes.
O que fazer diante disso? Dê um “tempo”. Pare de pensar tanto. Respire. Perceba como outros componentes ou elementos entram nessa equação chamada “vida”. E seja feliz. Muito feliz.



[1] É muito interessante observar, por outro lado, que em alguns textos a prática da meditação compõe os graus de ascensão mística, que por sua vez consiste “essencialmente em definir os graus progressivos da ascensão do homem até Deus, em ilustrar com metáforas o estado de êxtase e em procurar promover essa ascensão com discursos edificantes”, como indica Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de filosofia, Editora Martins Fontes, 2003, p. 672.
[2] Tomando como exemplo a tradição do Budismo, neste se entende que “a compreensão verdadeiramente profunda é conhecida pelo nome de ‘penetração’ e consiste em ver as coisas na sua verdadeira natureza, sem nome nem rótulos, sem conceitos. Essa penetração só é possível quando a mente está livre de todas as impurezas, de todos os condicionamentos e a visão interior foi desenvolvida ao máximo por meio da meditação (...) O objetivo principal da meditação consiste na contemplação ou observação pura (vigilância); compreender a vida e as coisas como elas realmente são, sem ver o bem, sem ver o mal, sem apego, se forem agradáveis ou favoráveis, sem aversão, se forem desagradáveis ou desfavoráveis; enfim, sem condicionamentos, que são entraves à observação pura”, como nos mostra Georges da Silva, em seu Budismo: psicologia do autoconhecimento, Editora Pensamento, 2008, p. 86.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Noções iniciais sobre o Dharma



Este texto tem por objetivo expor sucintamente as principais informações que dizem respeito a um termo que em si mesmo apresenta dificuldades quanto à verdadeira ou profunda compreensão do seu significado. De modo bastante simples, por dharma (em páli dhamma) se pode entender o ensinamento ou o conjunto dos ensinamentos do Buda e o caminho que conduz ao Pleno Despertar. Mas mesmo que se queira tornar o entendimento sobre tal verbete o mais simplificado possível, ainda assim são necessárias palavras adicionais.

É que a raiz sânscrita da palavra, ou seja, dhr, cujo sinônimo é “sustentar”, “apoiar” ou “manter”, significaria que o Dharma é aquilo que sustenta, mantém ou até possibilita a ocorrência da totalidade dos fenômenos. E isso porque quem perceber ou realizar a verdade última deparar-se-ia com a produção de tudo o que há no Universo, seja de natureza material ou mental. Neste particular, é interessante fazer uma brevíssima referência ao Dharmakaya, um dos elementos da (talvez[?] inadequadamente chamada) teoria dos três corpos do Buda.

O Dharma, quando associado à palavra kaya (corpo em sânscrito), revela o chamado Corpo do Dharma ou Corpo da Verdade (Absoluta), revelando a essência da natureza de todos os fenômenos, os quais têm, no conceito do sunyata (ou vacuidade), a inteireza da sua expressão mais profunda. Desta forma, aquele que realiza o estado de Buda apresenta também, como característica, a capacidade de transmitir ensinamentos relativos a tal ou tais conceitos, de modo que o discípulo possa perceber e, se o caso, realizar o Nirvana.

A dificuldade de se estabelecer um conceito do Dharma, majoritariamente aceita, talvez até perdesse um pouco de sentido, visto que a complexidade de seu significado está diretamente relacionada com o grau de entendimento de cada adepto e tal afirmação pode também ter como base os diferentes ensinamentos dados pelo Buda Shakyamuni ao longo dos mais de 40 anos em que permaneceu proferindo seus discursos. Isso porque se diz, dentro do Budismo, que houve três “giros” da roda do Dharma, os quais também corresponderiam ao que posteriormente se denominou como veículos Hinayana, Mahayana e Vajrayana.

Exemplo da diversidade de entendimentos acerca do que é o Dharma é apresentado por CORNU (2004, p. 147), ao dizer:

A palavra dharma possui dois sentidos principais: 1º. o ensinamento do Buda; 2º. os fenômenos, “o que mantém a sua própria identidade”. Mas tradicionalmente se lhe atribuem dez sentidos principais:

1.     Todos os cognoscíveis (SC. jñeya, TIB. shes-bya), ou seja, o conjunto de fenômenos compostos ou condicionados (SC. samskrta, TIB. ‘dus-byas) e de fenômenos não-compostos ou não-condicionados (SC. asamskrta, TIB. ‘dus-ma-byas).
2.     A via ou o Dharma da verdade do caminho.
3.     O nirvana ou “além do sofrimento” (TIB. mya-ngan ‘das-pa) ou Dharma da verdade da cessação.
4.     Os objetos do espírito (SC. manovisaya, TIB. yid-kyi yul), ou seja, os objetos ou fenômenos mentais (SC. dharmāyatana, TIB. chos-kyi skye-mched).
5.     Os méritos (SC. punya, TIB. bsod- nams), ou seja, todo comportamento virtuoso, todo pensamento e ação sadios.
6.     O tempo de vida (SC. āyu, TIB. tshe).
7.     As escrituras do Dharma (SC. dharmapravacana, TIB. gsung-rabs), o Tripitaka, etc.
8.     Os objetos materiais (SC. abhutika, TIB. ‘byung-‘gyur) que surgem dos elementos e se diz sujeitos a transformação.
9.     As regras (TIB. nges-pa), a tomada de votos espirituais.
10.  As tradições religiosas (SC. dharmanīti, TIB. chos-lugs), que englobam as diversas tradições e costumes religiosos do mundo.[1]  
        
HUMPHREYS (1997, p. 71) apresenta um entendimento nada enciclopédico, mas bem personalizado, ao dizer que:

Quase todos os homens têm um “Deus” que confere significado e propósito às suas existências. Tal conceito pode ser produto da criação pela família, pode ser formulado a partir de estudos feitos ou pode ainda ser o remanescente de alguma vida prévia. Apenas os Mestres, Rishis, Roshis, ou que nome tenham, não possuindo a noção de “outro” carecem da necessidade do conceito de Deus em qualquer de suas formas (...) O nome do meu Deus é Dharma. Que significa tal palavra? Seu significado básico é amparar. Outros termos usuais são Lei, Norma, Dever, Ensinamento. No budismo oriental a denominação é Buda-Dharma, ou dhamma na forma Pali. A mim o meu Deus dá uma plataforma que me ampara; dá significado à minha vida, bem como o objetivo e a agenda dessa vida; além disso, os meios de fazer frente à dita agenda e a força para levá-la a cabo.[2]  

O Lama Rendawa, ao comentar o texto de NAGARJUNA (1994, p. 41), expõe de maneira tipicamente doutrinária o entendimento acerca do Dharma, nos seguintes termos:

As virtudes do Darma são as seguintes: “O Darma do Bhagavan é bem-afirmado, capaz de ver com correção, isento de males, eterno, possuidor da transmissão correta, digno de contemplação e próprio para ser compreendido pelos sábios por meio da experiência pessoal”. Em resumo, estas qualidades indicam o Darma dúplice da doutrina e da realização (...) A seguinte citação tirada da escritura Uttaratantra (capítulo 1, estrofe 9) serve como definição do Darma:

Louvor àquilo que não pode ser examinado sob o ponto de vista do seu não-existir, do seu existir, de ambos, nem de outra coisa qualquer que não seja o existir ou o não-existir; que não tem explicação verbal, que deve ser compreendido por cada pessoa; e constitui a paz: o Darma Sagrado, o sol que irradia o fulgor da sabedoria imaculada que sobrepuja o apego, o ódio e a ignorância com relação a todos os objetos.[3]

 
Somente com os elementos acima, é possível uma grande discussão sobre o significado do Dharma. De maneira mais específica, DAVID-NEEL (2005, p. 46) ao falar sobre as Quatro Nobres Verdades, ou seja, o primeiro conjunto de ensinamentos proferidos pelo Buda Shakyamuni, pouco após sua iluminação, diz que:

Absolutamente não nos encontramos diante de um sistema que tem a pretensão de nos esclarecer sobre a origem do mundo e sobre a natureza da Causa Primordial. Não se trata de revelação feita ao homem por uma divindade, nenhuma alusão a um poder extra-humano, nenhuma promessa de ajuda sobrenatural aparecem no discurso do Buda. Trata-se de uma luta do homem contra o sofrimento que o sufoca, de uma luta que ele deve enfrentar só, e da qual ele pode sair vencedor por meios puramente humanos (...)

Na realidade, as Quatro Verdades não exprimem nenhuma verdade, se compreendemos estas palavras em seu significado comum, de fato demonstrado ou revelado. Afora a afirmação da possibilidade, existente para nós, de seremos os próprios agentes de nossa libertação, as Quatro Verdades são apenas a exposição de um método de salvação. O próprio budismo, aliás, não pretendeu jamais ser outra coisa.[4]


Que conjunto de ensinamentos ou caminho foi esse? Seguindo uma didática compatível com o nível de entendimento de cada indivíduo, o Buda Shakyamuni desenvolveu uma pedagogia muito adequada, isso porque, em linhas gerais, se pode dizer que o Budismo estabelece um sistema que auxilia a todos perceberem especialmente a natureza da mente, da sua própria condição e também da realidade, alcançando a auto-realização e eliminação do sofrimento em todas as suas formas, além da superação da cadeia de renascimentos o que é expresso numa palavra por Nirvana (em sânscrito, ou Nibbana, em páli), objetivo de todo praticante.

Quais seriam as bases desse sistema? Do ponto de vista empírico, é inegável que o Budismo apresenta uma forma de constatação cujo método é a incansável observação dos processos e essência mentais, o que é feito por intermédio de uma série de procedimentos ou técnicas. Concomitantemente, se realiza a constante prática do vasto conjunto de ensinamentos. Assim, é importante enfatizar que se trata essencialmente de uma filosofia, modo de vida ou modus operandi nitidamente pragmática, não meramente contemplativa.

Além disso, em algumas tradições do Budismo, em particular nas Escolas do Budismo Tibetano, é importantíssima a figura de um instrutor, preceptor ou “amigo” espiritual, denominado lama (ou bla-ma, em tibetano), cuja denominação no Ocidente foi popularizada como monge. Ou seja, é alguém que já passou por um longo aprendizado e treinamento e que ao se qualificar, recebe a autorização para que possa repassar tudo aquilo que sua linhagem espiritual desenvolveu.

Do ponto de vista teórico (ou ao menos naquilo que os ocidentais denominam como tal), existem tipos diferentes de textos que auxiliam os budistas a trilhar o caminho. Em primeiro lugar, os chamados cânones dos discursos proferidos pelo Buda e que foram, depois de sua morte, transcritos em diversos idiomas, seja o próprio sânscrito, o tibetano, o chinês ou japonês. É preciso dizer, também, que nunca houve (assim como não há) a pretensão ou mesmo intenção de se querer unificar o Budismo sob a égide de um único texto sagrado o que, aliás, lhe confere uma característica bastante peculiar. Os cânones compreendem não apenas um conjunto de doutrina em seu sentido restrito mas também textos com finalidade tipicamente normativa, a fim de estabelecer a conduta da comunidade dos monges, além de grandes trabalhos de exegese e cujo valor sagrado não se discute.



[1] CORNU, Philippe. Diccionario Akal del Budismo. Madrid: Ediciones Akal, 2004, Diccionarios Akal 40.
[2] HUMPRHEYS, Christmas. O budismo e o caminho da vida. São Paulo: Cultrix, 1997.
[3] NAGARJUNA. Carta a um amigo. São Paulo: Palas Athena, 1994.
[4] DAVID-NEEL, Alexandra. O Budismo do Buda. 2. ed. São Paulo: IBRASA, 2005.

domingo, 8 de setembro de 2013

O direito de ação no processo civil




Este texto tem por finalidade expor os principais aspectos do chamado direito de ação no mundo contemporâneo, dentre outros: seu conceito, fundamento e principais consequências práticas e que podem ser observadas pelas pessoas que, eventualmente, precisem se valer daquele instituto. Conceitualmente, ação é o direito, o qual é materializado no processo, que nada mais é do que o instrumento por meio do qual o interessado provoca o Estado para que este exerça a função jurisdicional e possa aplicar ao caso concreto um direito hipoteticamente previsto em lei, o qual foi violado e não recomposto espontaneamente, por intermédio do Poder Judiciário. Formalmente é assim. Ocorre que devem ser considerados outros elementos sobre tal direito (de ação).

É que por ser assim, também é necessário que se tenha em conta a sua natureza, a qual doutrinária e consensualmente se considera como sendo (de): a) um direito público – ou seja, poderá por todos (e pelo próprio Estado) ser utilizado, sendo que suas regras não podem ser objeto de alteração ao bel prazer de quem quer seja, a não ser pelo devido processo legislativo; b) um direito autônomo – quer dizer que o direito de ação independe de haver o chamado direito material[1], ou seja, pode perfeitamente haver ação sem que haja necessariamente a concessão de um direito pessoal, por exemplo; c) direito abstrato – não há qualquer obrigação em ser exercido o direito de ação e ser concedido o direito pleiteado e; d) direito instrumental – o direito de ação, quando materializado no processo, expressa um meio, um instrumento pelo qual se tenta obter um bem da vida.

Tudo isto foi dito para que se entenda o seguinte: quando uma pessoa (física ou jurídica) se dirige ao Poder Judiciário, a fim de pleitear um direito que entende ser devido ou supostamente tenha sido violado, está materializando um princípio constitucional, a saber, o do devido processo legal. Estão inseridos em tal dispositivo[2] da Constituição Federal vários pressupostos, sendo que um dos mais importantes reside no fato de que não basta apenas que exista um enorme conjunto de regras processuais, mas é fundamental que o direito de ação seja útil, no sentido de que ao dar “entrada” numa ação ela atinja efetivamente, concretamente, de modo eficiente os seus objetivos. Isto significa, por sua vez, que ao acionar alguém, o processo tem que ser (ou deveria ser): a) rápido – quanto a seu tempo de duração; b) eficaz – quanto à praticidade e materialidade da decisão proferida por um(a) juiz(a); c) legalmente “viável” – quanto à modernidade das regras processuais.[3]

Nas palavras de BUENO (2011, p. 385), o direito de ação “não se esgota com o ‘provocar’ o exercício jurisdicional, mas, mais amplamente, relaciona-se com o ‘agir’ que se segue àquele ato, com o ‘atuar’ enquanto atua o próprio Estado-juiz em função do rompimento inaugural de sua inércia”[4]. Para que se possa exercitar tal direito, tradicionalmente se entende que são necessárias três condições: a) que o pedido seja juridicamente possível (exemplo: o Código Civil não autoriza que se faça cobrança de dívida de jogo. Tal direito seria juridicamente impossível de ser concedido em eventual ação; b) que haja legitimidade de agir, ou seja, poderá exercer o direito de ação a pessoa que, ao menos em tese, é a titular (é a “dona”) do direito que se pleiteia; c) que haja interesse de agir, ou seja, a pessoa que exerce o direito de ação deve usar do meio processual adequado para tentar obter um provimento jurisdicional a seu favor.







[1] Entendido este como o conjunto de normas que dizem respeito aos bens da vida: corpóreos, incorpóreos, abstratos. Tais direitos estão previstos em códigos tais como o Código Civil, o Código Penal, Código Tributário Nacional, bem como em todas as leis que digam respeito à relação entre tais bens e utilidades da vida. Por outro lado, o direito processual é aquele que disciplina como o processo (civil, penal, tributário, administrativo, entre outros) deve se formar, tramitar e finalizar.
[2] Art. 5º, inciso LIV: “ninguém será privado de sua liberdade nem de seus bens sem o devido processo legal”.
[3] Especialmente pelo fato de que além do princípio do devido processo legal, a Constituição Federal, a partir do ano de 2004, estabeleceu como um direito de todos que haja a “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, inciso LXXVIII; grifamos).
[4] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil – teoria geral do direito processual civil. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, Volume I.

Jurisdição civil contemporânea




Este texto tem por objetivo, de modo simples, didático e bastante objetivo, expor o significado do termo jurisdição, bem como sua implicação prática na contemporaneidade. Entendida tradicionalmente como o poder-dever de aplicar o direito aos casos levados ao Poder Judiciário (nos processos judiciais), jurisdição nada mais é, por um lado, do que a obrigação que o Estado tem de solucionar os conflitos interpessoais que não o foram de maneira espontânea. Dito de outra forma e exemplificando: caso não se chegue a um acordo relativo aos prejuízos causados por um jarro que acidentalmente um morador de um apartamento derrubou em cima de um veículo estacionado no térreo de um prédio de apartamentos, poderá o proprietário do carro distribuir (manejar ou “dar entrada”) em eventual ação de reparação de danos.

Esse é o sentido do “dever” jurisdicional. Quanto ao “poder” ele o é de fato e de direito, ou seja, aos ocupantes do cargo na carreira da magistratura nacional é conferida a autoridade estatal de decidir o pleito das partes envolvidas em determinada situação, a qual não foi amigavelmente resolvida. Tal posição de mando é prevista já a partir do texto constitucional[1] e em vários dispositivos na legislação infraconstitucional[2]. Ou seja, é o(a) juiz(a) que tem, nos limites previstos no ordenamento normativo brasileiro, não apenas a prerrogativa mas a obrigação de resolver a demanda proposta. Tal tarefa pode até parecer “simples” para algumas pessoas, mas definitivamente não é bem assim. Isto porque o chamado poder jurisdicional, muito mais do que simples e mecanicamente “ler” a lei e aplicá-la a uma situação fática, precisa, igualmente, atender a várias outras expectativas. Grosso modo, a sociedade contemporânea, em seu afã pela satisfação das necessidades individuais e coletivas, exige uma resposta direta, concreta e eficiente nos processos judiciais.

O que se quis dizer na última oração é que ao(a) julgador(a) não basta apenas cumprir um “mero” papel de tecnocrata do Direito, ou seja, não é suficiente que apenas “diga” ou conceda o direito pleiteado pela parte, mas deve fazê-lo também: i) apresentando argumentos que sejam ao mesmo tempo convincentes e sensatos e; ii) determinando atos processuais eficazes, ou seja, que tragam resultados efetivamente úteis à pessoa interessada. Novamente: esta tarefa não é, de modo algum, fácil. Se por um lado o Poder Judiciário conta com uma estrutura composta por servidores, aparato tecnológico, instalações modernas, entre outros, por outro enfrenta dois grandes inibidores de sua atividade: o enorme número de demandas propostas, além da ainda legislação processual que (infelizmente?) permite recursos de caráter nitidamente protelatório.

A tentativa de superar a situação descrita pode ser observada, por exemplo, em estratégias elaboradas e implementadas pelos Órgãos Jurisdicionais, como as “Metas Nacionais do Poder Judiciário”, desenvolvidas em encontros e colocadas na prática pelos respectivos Tribunais pelo país afora[3]. Tudo isto foi dito para que se possa, ao final, valer-se do processo judicial para fazer uma justiça consistente, sólida, utilizando propostas significativas como a que faz PERELMAN (1999, p.163): “Na concepção atual do direito, menos formalista, porque preocupada com a maneira pela qual o direito é aceito pelo meio regido por ele e que, por isso mesmo, se interessa pelo modo como uma legislação funciona na sociedade, é impossível identificar pura e simplesmente o direito positivo com o conjunto de leis e regulamentos, votados e promulgados em conformidade com critérios que lhes garantem a validade formal. Pois pode haver divergências consideráveis entre a letra dos textos, sua interpretação e sua aplicação”.[4]



[1] Art. 93, Inciso I: “ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação”
[2] Apenas como exemplo, o atual art. 1º do CPC: “a jurisdição civil, contenciosa e voluntária, é exercida pelos juízes, em todo o território nacional, conforme as disposições que este Código estabelece”. Interessante observar que no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil a jurisdição ganha contornos diferenciados, pela leitura do art. 1º (“o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado con-forme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”) e 4º (“as partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral da lide, incluída a atividade satisfativa”).
[3] Exemplo disso pode ser observado na exposição feita pelo Conselho Nacional da Justiça, no seguinte link: http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/eventos/encontros-nacionais/4-encontro-nacional-do-poder-judiciario/metas-2011.
[4] PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 163 e segs.

Mandado de Segurança e competência para julgamento



Importante questão, para todas os(as) profissionais do Direito que militam nos Tribunais do país, diz respeito à competência para o julgamento do Mandado de Segurança[1] ou, por outro lado, a definição da autoridade coatora da qual emana o ato que se quer anular. A pertinência temática do texto fica ainda mais evidente se for observado que é relativamente comum se observar que os pedidos feitos em vários writs (outra denominação do Mandado de Segurança) são indeferidos liminarmente sob o argumento, nas decisões, de que foram distribuídos no foro incorreto ou, dito de outra forma, que se trata de incompetência absoluta em razão de hierarquia ou, se o caso, matéria.

A discussão se inicia pela leitura e conjugação do art. 5º, inciso LXIX da Constituição Federal, com o art. 1º da Lei 12.016/09[2], visto que tais dispositivos não são explícitos ou exaustivos ao conceituar o que vem a ser autoridade, limitando-se apenas dizer, no primeiro caso, que se trata de “autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público” e, no segundo, de “autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”. Alguém poderia argumentar que o termo autoridade, ao menos nessa situação, não exigiria demarcação ontológica, mas a praxis forense diz exatamente o contrário e tem sido o Poder Judiciário, em inúmeras situações, que empreendeu o árduo trabalho de (às vezes quase indecifrável) exegese da norma.

E é justamente nos casos concretos que se verifica a grande dificuldade em se fixar o sentido do termo indicado, confirmando que não se trata de um trabalho meramente teórico a ser feito. Exemplifico, desta forma, com um caso concreto. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em determinado Mandado de Segurança (MS)[3], ao analisar o pedido feito pelo autor, ementou em acórdão[4] que “o mero executor do ato administrativo, determinado pelo Tribunal de Contas da União, é parte ilegítima para figurar no polo passivo do Mandado de Segurança”, mas deve ser mencionado que tal ação foi proposta justamente com a finalidade de se anular ato prescrito pelo próprio Presidente daquela Corte.

Ao autor da ação não havia qualquer dificuldade em perceber que se a autoridade mencionada (o Presidente do TJDFT) ordenou a produção de certo ato administrativo, seria ela a autoridade coatora, mesmo considerando a anterior (e já revogada) lei de regência do MS[5]. A indigitada ação foi extinta sem resolução do mérito e incontinenti foi manejado recurso ordinário[6] a fim de que o Superior Tribunal de Justiça se pronunciasse, não sobre o mérito do direito discutido, mas acerca da competência para o julgamento da causa, visto que o Tribunal a quo, entre outros argumentos, explicitou que naquele caso específico a autoridade indicada como coatora era mera longa manus de uma decisão do Tribunal de Contas da União.

Em elaborado raciocínio, a Corte Superior explicitou, em sede recursal[7] que “segundo a Lei n. 12.016/2009, a autoridade passível de legitimidade passiva do pedido de segurança não é somente aquela delegatária imediata que dá execução ao ato, mas também a que detém poderes e meios para executar o futuro mandamento, porventura, ordenado pelo Poder Judiciário (autoridade delegante)”, determinando, então, que o processo retornasse ao TJDFT para que este, agora sim, julgue o pedido inicial. O relator do recurso, inclusive, deixou muito claro o posicionamento do STJ ao dizer igualmente que “a autoridade que deve figurar como coatora na impetração é aquela que, concretamente, praticou a ação ou omissão lesiva ao direito do impetrante”, bem como aquela que “detém poderes para corrigir a ilegalidade”.



[1] Regido pela Lei n° 12.016, a qual entrou em vigor em 07/08/2009 e pôs fim a algumas controvérsias que serão consideradas ao longo do texto.
[2] Cujos conteúdos, respectivamente, são: “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público” e “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.” (grifei)
[3] MS 2008.00.2.002789-5, de relatoria do Desembargador Getulio Pinheiro.
[4] Acórdão registrado sob o n° 346571, com data de julgamento em 25/11/2008.
[5] Lei n° 1.533/51.
[6] Com fundamento no art. 102, inciso II, alínea a da Constituição Federal e art. 539, Inciso I, do Código de Processo Civil.
[7] RMS 29713/DF, de relatoria do Ministro Jorge Mussi.