quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Noções iniciais sobre o Dharma



Este texto tem por objetivo expor sucintamente as principais informações que dizem respeito a um termo que em si mesmo apresenta dificuldades quanto à verdadeira ou profunda compreensão do seu significado. De modo bastante simples, por dharma (em páli dhamma) se pode entender o ensinamento ou o conjunto dos ensinamentos do Buda e o caminho que conduz ao Pleno Despertar. Mas mesmo que se queira tornar o entendimento sobre tal verbete o mais simplificado possível, ainda assim são necessárias palavras adicionais.

É que a raiz sânscrita da palavra, ou seja, dhr, cujo sinônimo é “sustentar”, “apoiar” ou “manter”, significaria que o Dharma é aquilo que sustenta, mantém ou até possibilita a ocorrência da totalidade dos fenômenos. E isso porque quem perceber ou realizar a verdade última deparar-se-ia com a produção de tudo o que há no Universo, seja de natureza material ou mental. Neste particular, é interessante fazer uma brevíssima referência ao Dharmakaya, um dos elementos da (talvez[?] inadequadamente chamada) teoria dos três corpos do Buda.

O Dharma, quando associado à palavra kaya (corpo em sânscrito), revela o chamado Corpo do Dharma ou Corpo da Verdade (Absoluta), revelando a essência da natureza de todos os fenômenos, os quais têm, no conceito do sunyata (ou vacuidade), a inteireza da sua expressão mais profunda. Desta forma, aquele que realiza o estado de Buda apresenta também, como característica, a capacidade de transmitir ensinamentos relativos a tal ou tais conceitos, de modo que o discípulo possa perceber e, se o caso, realizar o Nirvana.

A dificuldade de se estabelecer um conceito do Dharma, majoritariamente aceita, talvez até perdesse um pouco de sentido, visto que a complexidade de seu significado está diretamente relacionada com o grau de entendimento de cada adepto e tal afirmação pode também ter como base os diferentes ensinamentos dados pelo Buda Shakyamuni ao longo dos mais de 40 anos em que permaneceu proferindo seus discursos. Isso porque se diz, dentro do Budismo, que houve três “giros” da roda do Dharma, os quais também corresponderiam ao que posteriormente se denominou como veículos Hinayana, Mahayana e Vajrayana.

Exemplo da diversidade de entendimentos acerca do que é o Dharma é apresentado por CORNU (2004, p. 147), ao dizer:

A palavra dharma possui dois sentidos principais: 1º. o ensinamento do Buda; 2º. os fenômenos, “o que mantém a sua própria identidade”. Mas tradicionalmente se lhe atribuem dez sentidos principais:

1.     Todos os cognoscíveis (SC. jñeya, TIB. shes-bya), ou seja, o conjunto de fenômenos compostos ou condicionados (SC. samskrta, TIB. ‘dus-byas) e de fenômenos não-compostos ou não-condicionados (SC. asamskrta, TIB. ‘dus-ma-byas).
2.     A via ou o Dharma da verdade do caminho.
3.     O nirvana ou “além do sofrimento” (TIB. mya-ngan ‘das-pa) ou Dharma da verdade da cessação.
4.     Os objetos do espírito (SC. manovisaya, TIB. yid-kyi yul), ou seja, os objetos ou fenômenos mentais (SC. dharmāyatana, TIB. chos-kyi skye-mched).
5.     Os méritos (SC. punya, TIB. bsod- nams), ou seja, todo comportamento virtuoso, todo pensamento e ação sadios.
6.     O tempo de vida (SC. āyu, TIB. tshe).
7.     As escrituras do Dharma (SC. dharmapravacana, TIB. gsung-rabs), o Tripitaka, etc.
8.     Os objetos materiais (SC. abhutika, TIB. ‘byung-‘gyur) que surgem dos elementos e se diz sujeitos a transformação.
9.     As regras (TIB. nges-pa), a tomada de votos espirituais.
10.  As tradições religiosas (SC. dharmanīti, TIB. chos-lugs), que englobam as diversas tradições e costumes religiosos do mundo.[1]  
        
HUMPHREYS (1997, p. 71) apresenta um entendimento nada enciclopédico, mas bem personalizado, ao dizer que:

Quase todos os homens têm um “Deus” que confere significado e propósito às suas existências. Tal conceito pode ser produto da criação pela família, pode ser formulado a partir de estudos feitos ou pode ainda ser o remanescente de alguma vida prévia. Apenas os Mestres, Rishis, Roshis, ou que nome tenham, não possuindo a noção de “outro” carecem da necessidade do conceito de Deus em qualquer de suas formas (...) O nome do meu Deus é Dharma. Que significa tal palavra? Seu significado básico é amparar. Outros termos usuais são Lei, Norma, Dever, Ensinamento. No budismo oriental a denominação é Buda-Dharma, ou dhamma na forma Pali. A mim o meu Deus dá uma plataforma que me ampara; dá significado à minha vida, bem como o objetivo e a agenda dessa vida; além disso, os meios de fazer frente à dita agenda e a força para levá-la a cabo.[2]  

O Lama Rendawa, ao comentar o texto de NAGARJUNA (1994, p. 41), expõe de maneira tipicamente doutrinária o entendimento acerca do Dharma, nos seguintes termos:

As virtudes do Darma são as seguintes: “O Darma do Bhagavan é bem-afirmado, capaz de ver com correção, isento de males, eterno, possuidor da transmissão correta, digno de contemplação e próprio para ser compreendido pelos sábios por meio da experiência pessoal”. Em resumo, estas qualidades indicam o Darma dúplice da doutrina e da realização (...) A seguinte citação tirada da escritura Uttaratantra (capítulo 1, estrofe 9) serve como definição do Darma:

Louvor àquilo que não pode ser examinado sob o ponto de vista do seu não-existir, do seu existir, de ambos, nem de outra coisa qualquer que não seja o existir ou o não-existir; que não tem explicação verbal, que deve ser compreendido por cada pessoa; e constitui a paz: o Darma Sagrado, o sol que irradia o fulgor da sabedoria imaculada que sobrepuja o apego, o ódio e a ignorância com relação a todos os objetos.[3]

 
Somente com os elementos acima, é possível uma grande discussão sobre o significado do Dharma. De maneira mais específica, DAVID-NEEL (2005, p. 46) ao falar sobre as Quatro Nobres Verdades, ou seja, o primeiro conjunto de ensinamentos proferidos pelo Buda Shakyamuni, pouco após sua iluminação, diz que:

Absolutamente não nos encontramos diante de um sistema que tem a pretensão de nos esclarecer sobre a origem do mundo e sobre a natureza da Causa Primordial. Não se trata de revelação feita ao homem por uma divindade, nenhuma alusão a um poder extra-humano, nenhuma promessa de ajuda sobrenatural aparecem no discurso do Buda. Trata-se de uma luta do homem contra o sofrimento que o sufoca, de uma luta que ele deve enfrentar só, e da qual ele pode sair vencedor por meios puramente humanos (...)

Na realidade, as Quatro Verdades não exprimem nenhuma verdade, se compreendemos estas palavras em seu significado comum, de fato demonstrado ou revelado. Afora a afirmação da possibilidade, existente para nós, de seremos os próprios agentes de nossa libertação, as Quatro Verdades são apenas a exposição de um método de salvação. O próprio budismo, aliás, não pretendeu jamais ser outra coisa.[4]


Que conjunto de ensinamentos ou caminho foi esse? Seguindo uma didática compatível com o nível de entendimento de cada indivíduo, o Buda Shakyamuni desenvolveu uma pedagogia muito adequada, isso porque, em linhas gerais, se pode dizer que o Budismo estabelece um sistema que auxilia a todos perceberem especialmente a natureza da mente, da sua própria condição e também da realidade, alcançando a auto-realização e eliminação do sofrimento em todas as suas formas, além da superação da cadeia de renascimentos o que é expresso numa palavra por Nirvana (em sânscrito, ou Nibbana, em páli), objetivo de todo praticante.

Quais seriam as bases desse sistema? Do ponto de vista empírico, é inegável que o Budismo apresenta uma forma de constatação cujo método é a incansável observação dos processos e essência mentais, o que é feito por intermédio de uma série de procedimentos ou técnicas. Concomitantemente, se realiza a constante prática do vasto conjunto de ensinamentos. Assim, é importante enfatizar que se trata essencialmente de uma filosofia, modo de vida ou modus operandi nitidamente pragmática, não meramente contemplativa.

Além disso, em algumas tradições do Budismo, em particular nas Escolas do Budismo Tibetano, é importantíssima a figura de um instrutor, preceptor ou “amigo” espiritual, denominado lama (ou bla-ma, em tibetano), cuja denominação no Ocidente foi popularizada como monge. Ou seja, é alguém que já passou por um longo aprendizado e treinamento e que ao se qualificar, recebe a autorização para que possa repassar tudo aquilo que sua linhagem espiritual desenvolveu.

Do ponto de vista teórico (ou ao menos naquilo que os ocidentais denominam como tal), existem tipos diferentes de textos que auxiliam os budistas a trilhar o caminho. Em primeiro lugar, os chamados cânones dos discursos proferidos pelo Buda e que foram, depois de sua morte, transcritos em diversos idiomas, seja o próprio sânscrito, o tibetano, o chinês ou japonês. É preciso dizer, também, que nunca houve (assim como não há) a pretensão ou mesmo intenção de se querer unificar o Budismo sob a égide de um único texto sagrado o que, aliás, lhe confere uma característica bastante peculiar. Os cânones compreendem não apenas um conjunto de doutrina em seu sentido restrito mas também textos com finalidade tipicamente normativa, a fim de estabelecer a conduta da comunidade dos monges, além de grandes trabalhos de exegese e cujo valor sagrado não se discute.



[1] CORNU, Philippe. Diccionario Akal del Budismo. Madrid: Ediciones Akal, 2004, Diccionarios Akal 40.
[2] HUMPRHEYS, Christmas. O budismo e o caminho da vida. São Paulo: Cultrix, 1997.
[3] NAGARJUNA. Carta a um amigo. São Paulo: Palas Athena, 1994.
[4] DAVID-NEEL, Alexandra. O Budismo do Buda. 2. ed. São Paulo: IBRASA, 2005.

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