quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Poder, um saco de sal e viagens


Poder, um saco de sal e viagens

O autoconhecimento é daquelas tarefas ou encargos, senão a mais árdua e intrigante em todas as existências, com certeza uma das que implica em necessidades e exigências de diversos matizes. Refiro-me à enorme quantidade de tempo, dinheiro, energia, entre outros aspectos, que somados nos possibilitam desenvolver uma percepção e/ou consciência mais profunda do que significa “isso” que denominamos “eu”. Sobre esse último, talvez fosse importante tecer alguns comentários, a fim de fazer uma ligação com o título deste texto. É interessante observar que o ocidente sempre manteve, ao menos como princípio ou hipótese inicial de investigação do mundo e da própria raça humana a ideia de pessoalidade, ou seja, a “existência” de um “eu” e um objeto dissociados e absolutamente distintos e esta é noção clássica da relação de conhecimento. 

Basta transcrever alguns exemplos para que se tenha uma idéia do que está sendo dito. Partindo da filosofia, uma primeira aproximação de um conceito do eu é sugerida por ABBAGNANO (2003, p. 388) ao dizer que “esse pronome, com que o homem se designa a si mesmo, passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento em que a referência do homem a si mesmo, como reflexão de si ou consciência de si foi assumida como definição do homem”, apresentando, ainda, quatro possíveis interpretações para tal termo, a saber:

a)   consciência, relação consigo mesmo ou subjetividade, que pode ser vista no projeto filosófico cartesiano;

b)   unidade ou identidade, sendo a consciência que funda a identidade pessoal, conceito defendido por John Locke;

c)   autoconsciência como unidade da percepção pura, para Kant;

d)   a diferenciação do eu enquanto consciência (como quando se diz “eu sou”) e a personalidade que inclui zonas de ignorância mais ou menos voluntárias (e o exemplo disso é enquanto se está dormindo).[1]
  
Já Platão, em seu Sofista, define provisoriamente que:

O que naturalmente traz em si um poder qualquer ou para agir sobre não importa o quê, ou para sofrer a ação, por menor que seja, do agente mais insignificante, e não por uma única vez, é um ser real; pois, afirmo, como definição capaz de definir os seres, que eles não são senão um poder (...) Mas pela alma, por meio do pensamento é que estamos em comunhão com o verdadeiro, o qual, dizei vós, é sempre idêntico a si mesmo e imutável; enquanto que o devir varia a cada instante.[2]

Explicitamente, é legítimo dizer que o self como objeto de estudos e reflexões filosóficas, teve no pensamento de René Descartes (1596-1650) e no próprio racionalismo um de seus marcos históricos. Isto porque o argumento do cogito (cogito, ergo sum – “penso, logo existo”), em que pesem suas limitações e dificuldades epistemológicas, expõe claramente uma das preocupações de Descartes, a saber, a fundamentação do conhecimento humano por meio da dúvida metódica, que teve em outros autores a radicalização do ceticismo. Ao dizer “penso”, evidentemente Descartes teria que definir quem ou o quê pensa, ou seja, o sujeito do ato de pensar; o quê é pensado, ou seja, o conteúdo do pensamento ou aquilo para o qual o pensamento é dirigido; para quê, ou seja, a finalidade do pensamento, entre outros. E isso foi feito em vários dos seus escritos.

Falei disso tudo para transitarmos para um assunto correlato: o conhecimento da outra pessoa, ou seja, de modo genérico e particular, aquelas com as quais nos relacionamos diuturna, profissional, espiritual, emocional e/ou pessoalmente. Se o autoconhecimento já é uma árdua tarefa, o que dizer de tentar perceber ou conhecer o(a) outro(a)? Definitivamente, não considero legítimas perguntas ou cobranças do tipo “como você não me conhece?” dirigidas de um(a) parceiro(a) a outro(a). Isso porque, seguindo um princípio (ou lei) de total, de absoluta impermanência da realidade fenomênica, no mínimo seria incongruente (ou impossível) exigir que alguém se mantivesse física, mental e emocionalmente exatamente o(a) mesmo(a) ao longo de uma vida. Sendo assim, minhas experiências me levaram a elaborar maneiras (fáceis?) de se perceber com que tipo de pessoa se está lidando. Seguem, então, minhas sugestões.

A primeira (e melhor?) forma de se saber com que tipo de ser humano se está lidando é, paradoxalmente, a mais evidente: observe, muito atentamente, como (re)age alguém que tenha poder (ou pelo menos que acha que tem). É muito comum, hoje em dia, rebatermos na internet uma frase, supostamente atribuída a Abraham Linconl (ou Maquiavel?), a qual possui mais ou menos o seguinte conteúdo: “quase todos os homens são capazes de suportar adversidades, mas se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”. Pois bem. Apenas para que seja colocado um norte no que entendo por este termo (poder), segue um bom entendimento com o qual concordo, fornecido por LEBRUN (2001, p. 20):

O poder não é um ser, ‘alguma coisa que se adquire, se toma ou se divide, algo que se deixa escapar’. É o nome atribuído a um conjunto de relações que formigam por toda a parte na espessura do corpo social (poder pedagógico, pátrio poder, poder do policial, poder do contra-mestre, poder do psicanalista, poder do padre, etc, etc) (...) Quando a questão é compreender como foi e continua sendo possível a resignação, quase ilimitada, dos homens perante os excessos do poder, não basta invocar as “disciplinas” e as mil fórmulas de adestramento que, como mostra Foucault, são achados relativamente recentes da modernidade. Sua origem e seu sucesso talvez se devam a um sentimento atávico dos deserdados, de serem por natureza excluídos do poder, estranhos a este (...) Ainda que o poder não seja uma coisa, ele torna-se uma, pois é assim que a maioria dos homens o representa.[3]

Ou seja: observe, muito atentamente, uma pessoa e o que ela faz, como lida, quando e como utiliza o poder, seja ele de que espécie ou tipo for, para que Você tenha um excelente parâmetro de avaliação do tipo de ser humano está à sua frente. Claro que essa, digamos, “investigação” pode ter falhas ou levar um bom tempo. Mas é bem válida, considerando que toda forma de poder é também uma das maneiras como se relaciona com a própria existência. Passemos à segunda “boa” alternativa de se conhecer a outra pessoa. E é ótimo, porque se passa de um plano, às vezes totalmente subjetivo ou teórico, para outro, de natureza totalmente pragmática: se quer distinguir uma pessoa de outra, divida com ela um saco de sal.

Dito de outra forma: compartilhe, com outra pessoa, a maior dificuldade que tiver na vida, para ver como responde e o que faz (qual é a atitude) dela, diante de situações ou momentos de extremo estorvo. Perante a morte, a pobreza (material, psicológica, emocional), a doença. Justamente em tais condições é que, talvez, melhor se tenha plena capacidade de perceber quem é (ou o “qual” é) a criatura com quem nos relacionamos. E um (hipotético e) simples (dramático?) exemplo é suficiente para demonstrar isso: diante da situação extrema em ter que literalmente sacrificar a própria vida para salvar uma pessoa totalmente estranha, o que fazer?

Claro que ninguém faria isso, não é verdade? Errado! Muita gente faz isso. Exemplo? Pessoas que trabalham como Bombeiro(a). “Mas eles/elas são pagos(as) para realizar o trabalho, oras”, diria Você. Até concordaria com a afirmação, se me respondesse de modo inquestionável o por quê tal pessoa escolhe uma profissão/atividade que, além dos riscos inerentes, pode chegar a ponto de ter que doar-se de modo absoluto para que outra, a qual sequer se conhece, possa sobreviver. Consegue elaborar tal explicação? 

Finalmente, uma das maneiras interessantes de se conhecer alguém é, literalmente, viajar com ela. Ao sair da “zona de conforto”, uma pessoa é capaz de agir de maneira muito “verdadeira”. É muito provável que o leitor ou a leitora desse texto já tenha passado por esse tipo de, digamos, ensaio. Se não, experimente


[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003
[2]PLATÃO. Sofista. In: Diálogos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)
[3] LEBRUN, Gerárd. O que é poder. 3ª reimp. da 14ª ed. de 1995. São Paulo: Brasiliense, 2001. Coleção Primeiros Passos, vol. 24


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