Poder, um saco de sal
e viagens
O autoconhecimento é
daquelas tarefas ou encargos, senão a mais árdua e intrigante em todas as
existências, com certeza uma das que implica em necessidades e exigências de
diversos matizes. Refiro-me à enorme quantidade de tempo, dinheiro, energia,
entre outros aspectos, que somados nos possibilitam desenvolver uma percepção
e/ou consciência mais profunda do que significa “isso” que denominamos “eu”. Sobre
esse último, talvez fosse importante tecer alguns comentários, a fim de fazer
uma ligação com o título deste texto. É interessante observar que o ocidente
sempre manteve, ao menos como princípio ou hipótese inicial de investigação do
mundo e da própria raça humana a ideia de pessoalidade, ou seja, a “existência” de um
“eu” e um objeto dissociados e absolutamente distintos e esta é noção clássica
da relação de conhecimento.
Basta transcrever
alguns exemplos para que se tenha uma idéia do que está sendo dito. Partindo da
filosofia, uma primeira aproximação de um conceito do eu é sugerida por
ABBAGNANO (2003, p. 388) ao dizer que “esse pronome, com que o homem se designa
a si mesmo, passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento
em que a referência do homem a si mesmo, como reflexão de si ou consciência de
si foi assumida como definição do homem”, apresentando, ainda, quatro possíveis
interpretações para tal termo, a saber:
a)
consciência, relação consigo mesmo ou subjetividade, que pode ser vista
no projeto filosófico cartesiano;
b)
unidade ou identidade, sendo a consciência que funda a identidade
pessoal, conceito defendido por John Locke;
c)
autoconsciência como unidade da percepção pura, para Kant;
d)
a diferenciação do eu enquanto consciência (como quando se diz
“eu sou”) e a personalidade que inclui zonas de ignorância mais ou menos
voluntárias (e o exemplo disso é enquanto se está dormindo).[1]
Já Platão, em seu Sofista ,
define provisoriamente que:
O que naturalmente traz em
si um poder qualquer ou para agir sobre não importa o quê, ou para sofrer a
ação, por menor que seja, do agente mais insignificante, e não por uma única
vez, é um ser real; pois, afirmo, como definição capaz de definir os seres, que
eles não são senão um poder (...) Mas pela alma, por meio do pensamento é que
estamos em comunhão com o verdadeiro, o qual, dizei vós, é sempre idêntico a si
mesmo e imutável; enquanto que o devir varia a cada instante.[2]
Explicitamente, é
legítimo dizer que o self como objeto de estudos e reflexões
filosóficas, teve no pensamento de René Descartes (1596-1650) e no próprio racionalismo
um de seus marcos históricos. Isto porque o argumento do cogito (cogito,
ergo sum – “penso, logo existo”), em que pesem suas limitações e
dificuldades epistemológicas, expõe claramente uma das preocupações de
Descartes, a saber, a fundamentação do conhecimento humano por meio da dúvida
metódica, que teve em outros autores a radicalização do ceticismo. Ao dizer
“penso”, evidentemente Descartes teria que definir quem ou o quê
pensa, ou seja, o sujeito do ato de pensar; o quê é pensado, ou seja, o
conteúdo do pensamento ou aquilo para o qual o pensamento é dirigido; para
quê, ou seja, a finalidade do pensamento, entre outros. E isso foi feito em
vários dos seus escritos.
Falei disso tudo
para transitarmos para um assunto correlato: o conhecimento da outra pessoa, ou
seja, de modo genérico e particular, aquelas com as quais nos relacionamos
diuturna, profissional, espiritual, emocional e/ou pessoalmente. Se o
autoconhecimento já é uma árdua tarefa, o que dizer de tentar perceber ou
conhecer o(a) outro(a)? Definitivamente, não considero legítimas perguntas ou
cobranças do tipo “como você não me conhece?” dirigidas de um(a) parceiro(a) a
outro(a). Isso porque, seguindo um princípio (ou lei) de total, de absoluta
impermanência da realidade fenomênica, no mínimo seria incongruente (ou
impossível) exigir que alguém se mantivesse física, mental e emocionalmente exatamente o(a) mesmo(a) ao
longo de uma vida. Sendo assim, minhas experiências me levaram a elaborar
maneiras (fáceis?) de se perceber com que tipo de pessoa se está lidando.
Seguem, então, minhas sugestões.
A primeira (e
melhor?) forma de se saber com que tipo de ser humano se está lidando é,
paradoxalmente, a mais evidente: observe, muito
atentamente, como (re)age alguém que tenha poder
(ou pelo menos que acha que
tem). É muito comum, hoje em dia, rebatermos na internet uma frase, supostamente atribuída a Abraham Linconl (ou
Maquiavel?), a qual possui mais ou menos o seguinte conteúdo: “quase todos os homens são capazes de suportar adversidades,
mas se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”. Pois
bem. Apenas para que seja colocado um norte no que entendo por este termo
(poder), segue um bom entendimento com o qual concordo, fornecido por LEBRUN
(2001, p. 20):
O
poder não é um ser, ‘alguma coisa que
se adquire, se toma ou se divide, algo que se deixa escapar’. É o nome
atribuído a um conjunto de relações que formigam por toda a parte na espessura
do corpo social (poder pedagógico, pátrio poder, poder do policial, poder do
contra-mestre, poder do psicanalista, poder do padre, etc, etc) (...) Quando a
questão é compreender como foi e continua sendo possível a resignação, quase
ilimitada, dos homens perante os excessos do poder, não basta invocar as
“disciplinas” e as mil fórmulas de adestramento que, como mostra Foucault, são
achados relativamente recentes da modernidade. Sua origem e seu sucesso talvez
se devam a um sentimento atávico dos deserdados, de serem por natureza excluídos do poder, estranhos a este (...) Ainda que o
poder não seja uma coisa, ele torna-se uma, pois é assim que a maioria dos
homens o representa.[3]
Ou seja: observe,
muito atentamente, uma pessoa e o que ela faz, como lida, quando e como utiliza
o poder, seja ele de que espécie ou tipo for, para que Você tenha um excelente
parâmetro de avaliação do tipo de ser humano está à sua frente. Claro que essa,
digamos, “investigação” pode ter falhas ou levar um bom tempo. Mas é bem
válida, considerando que toda forma de poder é também uma das maneiras como se
relaciona com a própria existência. Passemos à segunda “boa” alternativa de se
conhecer a outra pessoa. E é ótimo, porque se passa de um plano, às vezes
totalmente subjetivo ou teórico, para outro, de natureza totalmente pragmática:
se quer distinguir uma pessoa de outra, divida com ela um saco de sal.
Dito de outra forma: compartilhe,
com outra pessoa, a maior dificuldade que tiver na vida, para ver como responde e o que faz (qual é a atitude) dela, diante
de situações ou momentos de extremo estorvo. Perante a morte, a pobreza
(material, psicológica, emocional), a doença. Justamente em tais condições é que, talvez, melhor se tenha
plena capacidade de perceber quem é (ou o “qual” é) a criatura com quem nos
relacionamos. E um (hipotético e) simples (dramático?) exemplo é suficiente
para demonstrar isso: diante da situação extrema em ter que literalmente sacrificar a
própria vida para salvar uma pessoa totalmente
estranha, o que fazer?
Claro que ninguém faria
isso, não é verdade? Errado!
Muita gente faz isso. Exemplo? Pessoas que trabalham como Bombeiro(a). “Mas
eles/elas são pagos(as) para realizar o trabalho, oras”, diria Você. Até
concordaria com a afirmação, se me respondesse de modo inquestionável o por quê tal pessoa escolhe uma
profissão/atividade que, além dos riscos inerentes, pode chegar a ponto de ter
que doar-se de modo absoluto para que outra,
a qual sequer se conhece, possa sobreviver. Consegue elaborar tal explicação?
Finalmente,
uma das maneiras interessantes de se conhecer alguém é, literalmente,
viajar com ela. Ao sair da “zona de conforto”, uma pessoa é capaz de agir de
maneira muito “verdadeira”. É
muito provável que o leitor ou a leitora desse texto já tenha passado por esse
tipo de, digamos, ensaio. Se não, experimente
[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003
[2]PLATÃO. Sofista. In: Diálogos.
4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)
[3] LEBRUN, Gerárd. O que é poder. 3ª reimp. da 14ª ed. de 1995. São Paulo:
Brasiliense, 2001. Coleção Primeiros Passos, vol. 24
Nenhum comentário:
Postar um comentário