quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Impermanência



Anitya, Dukkha e Anatman

Um rápido exercício de observação é suficiente para constatar que a realidade apresenta uma característica incontestável: a impermanência ou transitoriedade que, em sânscrito, é nomeado como anitya. Das partículas constitutivas do átomo ao universo da antimatéria, se pode perceber a inexorabilidade da transformação, ou seja, o fato de que toda a existência está submetida a um eterno processo de mudança. É bem conhecida, no mundo ocidental, a afirmação de que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, atribuída ao químico francês Lavoisier (1743-1794). Ao concluir que nas reações químicas estava presente um princípio, posteriormente nomeado de conservação da matéria, o cientista trouxe à tona um dado que há pelo menos 2500 anos já era proposto pelo Budismo.

Igualmente não é difícil perceber que qualquer ser vivo está submetido à sucessão do nascimento, crescimento, desenvolvimento, velhice e morte. Se aplicada aos grupos humanos, pode-se perceber que estes também estão inseridos na roda do samsara[1] pois ao longo de suas existências, infinitas atitudes, palavras e pensamentos individuais e coletivos são gerados, com suas respectivas conseqüências. É preciso esclarecer que tudo o que se faz, pensa ou fala em qualquer momento não é único problema quanto à elaboração do karma, seja positivo ou negativo. A dificuldade também está em se perceber a totalidade na qual cada indivíduo (de uma comunidade, um país, um planeta, um sistema solar) está inserido

Retomando o ponto inicial, à medida que se vai percebendo a impermanência da realidade, muito já se pode fazer quanto à mudança de comportamento individual e, porque não dizê-lo, coletivo. Isto porque, em parte, o sofrimento da grande maioria dos seres reside, entre outros, no fato de não perceber que os estados experimentados por cada indivíduo, além de serem únicos, são transitórios, passageiros e, por mais “reais” que possam parecer assim o são naquele momento, e certamente não o serão posteriormente. Tomando como exemplo os líderes de alguns povos, percebe-se facilmente que bastou uma revolta popular, ou mesmo uma conspiração entre os comandados de Júlio César (100-44 a.C.), para que seu “poder”, considerado “infinito” ou “absoluto”, fosse colocado em seus devidos parâmetros, a saber, restrito a determinada circunstância histórica, limitado e ambicioso.

Assim, percebemos que somos regidos por um princípio de eternas alterações, mudanças contínuas, desde o mau-humor matinal à euforia por derrotas profissionais, passando por decepções amorosas, e isso apenas do ponto de vista psico-emocional. Da mesma forma, o organismo vai acompanhando a transitoriedade da vida, fazendo trocas gasosas, repondo e aniquilando células, entre outras transformações que nada mais refletem esse caráter de eterna mutação interna e externa. Ou seja: “nada é eterno” e a vida é uma sucessão de acontecimentos por sua vez seguidos por outros, e nomeá-los “bons” ou “ruins” é uma questão de percebê-los de uma ou de outra maneira, pois o rótulo que se atribui às coisas, pessoas ou situações depende também e em grande parte do modo como lidamos conosco e da perspectiva na qual aqueles eventos são encarados.

Vista esta primeira característica, pode-se complementá-la com outra que diretamente concorre para a produção de estados de desequilíbrio da mente, a saber, a insatisfação ou dukkha. A palavra sânscrita dukkha é geralmente traduzida como sofrimento, isto é, desarmonia entre o eu pessoal e o mundo real não-condicionado. Mas estas noções, segundo SILVA (2002, p. 40):

são insuficientes e enganadoras. Admite-se que o termo dukkha possa ser empregado como enunciado da Primeira Nobre Verdade, significando Sofrimento, porém nele estão implicadas noções mais profundas e filosóficas, entrelaçadas entre si, de impermanência, insatisfatoriedade, imperfeição, conflito, não-substancialidade ou impessoalidade (inexistência de uma individualidade eterna e imutável, a ilusão de um eu substancial). Por esta razão, torna-se difícil encontrar uma expressão, em qualquer língua ocidental, que abranja todo o conteúdo do termo dukkha. Por conseguinte, é melhor abster-se de traduzir dukkha, do que arriscar-se a dar uma interpretação inadequada e falsa como a de sofrimento ou dor.[2]


Aliada à noção de que a realidade externa ao indivíduo assim como seus conteúdos internos estão em inexorável transformação, deve-se perceber também que nossa mente, a todo o momento e incansavelmente, fica exigindo-nos mais e mais ou, em outras palavras, há um fluxo constante de desejos que, por não serem satisfeitos, dá a sensação de que “algo falta”, que existe uma inequívoca insatisfação. Várias seriam as razões pelas quais tal estado insatisfatório se estabelece e que às vezes é generalizado, permeando todos os aspectos da vida de uma pessoa, seja na profissão, nos relacionamentos amorosos, entre outros. Por sua vez, estes últimos estão inseridos num conjunto maior, integrante do universo de informações constituintes da mente de uma pessoa e que também é elaborado por meio de diversos mecanismos, entre eles, a educação. 

No Ocidente, de um modo geral, o conteúdo educacional transmitido à criança pelos pais (e também pela educação oficial ou estatal) é repleto de uma série de conteúdos que dizem respeito às mais variadas áreas da relação interpessoal e/ou intelectual: moral social, regras de convívio, noções de justiça, autodefesa, religião, cultura, ciências, entre tantas outras. Mas não é comum encontrar um contexto pedagógico que se preocupe em dialogar, por exemplo, sobre questões filosóficas e práticas acerca da vida ou mesmo reflexões profundas sobre a própria existência. A morte, por exemplo, é um daqueles temas que freqüentemente povoam (e talvez atordoem) a mente ocidental, por vários motivos. Por outro lado, a morte pode ser encarada de maneira absolutamente diferenciada, como a que nos propõe Kalu RINPOCHE (1999, p. 312), pois:

mesmo para um praticante o processo todo de morrer pode ainda ser vivido com sofrimento, já que perder o corpo e esta vida pode ser uma experiência muito difícil. Mas se tivermos recebido instruções sobre o significado da morte, saberemos que existe uma enorme esperança no momento em que a Luminosidade Base surge no momento da morte. No entanto, resta ainda a incerteza de se vamos reconhecê-la ou não, e por isso é tão importante estabilizar o reconhecimento da natureza da mente pela prática enquanto ainda estamos vivos.[3]

Com poucas exceções, este é um dos assuntos que ainda (e muito) incomodam, amedrontam e são praticamente relegados ao um plano, por assim dizer, de somenos importância por parte de algumas das religiões ocidentais, quanto à sua discussão e compreensão, ao menos de maneira explícita e pública. Questões como “o que é amar”, “o que é a felicidade”, “o que sou”, “o que é viver e morrer”, “qual a relação entre os que estão mortos e os vivos”, “o que ocorre durante e após a morte”, entre várias outras, em raríssimos casos são tratadas a contento em debates que atingem grandes audiências. Tudo isto foi dito por que são assuntos que senão constantemente, ao menos num determinado momento da vida de cada indivíduo, aparecerem como que para “provocar” a imaginação, a curiosidade, mas principal e talvez infelizmente, evidenciar o despreparo que se tem diante do fato de que todos os seres, de um ou de outro modo, irão morrer.

Algumas experiências como a felicidade, por exemplo, por mais que se queira conceituar ou discutir, ao final são individuais. Só que, repita-se, não fazem parte das conversas cotidianas, nem fazem parte de muitos cursos regulares nos meios acadêmicos, assim como a engenharia civil ou a medicina, salvo, se o caso, em cursos como os de Filosofia, Psicologia ou como cursos de extensão. Ao não tratar explicitamente de tais assuntos, o homem ocidental é orientado por e para temas que, apesar de sua importância, ainda não são suficientes para dar um sentido de complementaridade à vida ou, mesmo, algo que responda a uma série de questionamentos metafísicos.

Em essência e em última palavra, os temas dirigem-se a outro que, para o Budismo, deve ser tido como um dos principais “objetos” de investigação por parte do(a) praticante, a saber: a mente. Pois é esta última que sempre está em constante inquietação, em frenética atividade, produzindo uma infinita cadeia de pensamentos como “sou competente”, “preciso comer”, “vou matá-lo”, entre incontáveis outros[4]. E é uma atividade tão intensa que sequer percebe-se a quantidade ou mesmo a natureza de todo o material mental elaborado. Apenas para ilustrar tal gigantismo, um exercício interessante seria a contagem de todos os pensamentos que um indivíduo comumente realiza durante apenas uma hora. Somente neste período, já seria possível enumerar centenas deles.

De todo o material produzido pela mente, entre outros elementos, observa-se o desejo. Associados a este, estão a satisfação e a insatisfação. E é justamente em cima desta polarização que a mente trabalha rotulando como (parcialmente) “satisfeito” ou “insatisfeito” determinado desejo. Percebe-se, então, que toda esta atividade requer ou demanda uma imensa quantidade de energia, pois incansavelmente o ser humano é conduzido por seus próprios desejos, não concedendo tempo ou momento para que a mente descanse ou mesmo pare de emitir pensamentos. Isso pode causar um profundo desgaste mental, a ponto de levar a pessoa à exaustão e, em casos mais graves, a um completo desequilíbrio, passível de tratamento terapêutico.

Dessa forma, insatisfeito em um, alguns ou mesmo em quase todos os aspectos da existência, se pode estar diante de um indivíduo que literalmente está “morto” para uma determinada vida, ou seja, sequer percebeu sua própria condição enquanto humano, ou mesmo quais as suas possibilidades para que contribua não apenas para que supere suas dificuldades e assim veja sua situação melhore (do ponto de vista material, espiritual, moral, entre outros), mas também num conjunto mais amplo. Perdido na vastidão de sua mente, uma pessoa poderá passar toda uma vida sendo escravo de seus próprios desejos que, se insatisfeitos, poderão trazer sofrimentos dos mais variados matizes. Uma das grandes questões é também saber como lidar com o sofrimento, e é justamente para desenvolver uma estratégia para percebê-lo e eliminá-lo que o Budismo propõe uma série de treinamentos. Em última instância, faz parte do objetivo de todos os budistas, eliminar toda forma de sofrimento.

Vistos a impermanência e a insatisfatoriedade, o último componente de dukkha satya para a doutrina budista é a impessoalidade, talvez o de mais difícil compreensão e/ou aceitação por parte do homem ocidental. Isto porque, em regra, ele sempre manteve a tendência de investigar e identificar o ente ou o ser não apenas do próprio homem, mas também de todas as experiências do mundo fenomênico, tanto material quanto ideal. Tal tradição já estava presente desde a filosofia platônica e, ao longo dos séculos, foi reforçada veementemente, a ponto de mais recentemente levar pensadores do quilate de Martin Heidegger elaborarem em seu Ser e tempo uma doutrina muito bem estruturada sobre a questão ôntica e ontológica do ser. Como conseqüência, o ocidente manteve a quase obsessão de privilegiar o indivíduo (ego) como centro das atenções e em inúmeros momentos da historiografia ocidental, o homem procurou revitalizar a noção egóica, além de ampliá-la.

Para o Budismo, como premissa, o universo material e imaterial não possui uma substância ou essência intrínseca, absolutamente independente ou dissociada de tudo e de todos, dito anatman. Isto quer dizer que a ocorrência de todos os fenômenos de ordem material ou mental depende ou necessita de condições prévias, sem as quais não haveria a própria ocorrência fenomênica. Essa afirmação está em direta ligação com o primeiro aspecto da realidade, já visto, ou seja, a impermanência de todos os fenômenos complementa-se com o fato de que não há uma substancialidade do que quer que seja. Isso porque, não havendo qualquer ocorrência intrinsecamente permanente, é também razoável perceber que não há uma “essência” subjacente a toda realidade. Existem alguns bons argumentos para tal afirmação. 

Em primeiro lugar, é preciso perceber que fundamentalmente tudo o que tem existência assim o é em função de sua interação com outras forças ou ocorrências. Não haveria sentido na existência de um “algo” se o mesmo não interagisse com tudo o que lhe circunda. Por esse raciocínio, só se pode falar da existência de “algo” ou, numa linguagem heideggeriana, de um “ente” ou de um ser, se for pensado ou percebido em relação com outros seres ou entes. Dito de outra forma, a existência pressupõe uma relação de pertinência a um contexto com outras existências, com outros seres e, por isso, não haveria sentido em falar de um ser, de um “algo” absolutamente solto, isolado, sem qualquer relação com outros seres.

O Budismo propõe que “tudo” no universo não tem uma essencialidade, não tem uma realidade em si mesmo, mas depende de uma série de circunstâncias para que possa vir à existência. Assim se processa a existência do mundo, do homem, enfim, do conjunto fenomênico. Se for perguntado, por exemplo, o quê é uma pessoa, é possível uma série de respostas, e isto somente se for considerado o conhecimento humano. Assim, a Psicologia fornecerá uma abordagem, que possivelmente será diferente da Biologia e assim sucessivamente ocorrerá com a Teologia ou Filosofia.

O homem é espírito? É mente? Sangue, ossos e músculos? O homem é um complexo consciente? Todas estas respostas podem ser consideradas verdadeiras para um indivíduo enquanto vivo, evidentemente, se tomada uma determinada perspectiva, mas não conferem suporte satisfatório a outras questões: ao morrer, o que “é” ou “em quê” se transforma o homem? Decorrente dessa surge outra: como pode a pessoa, ao morrer, ser algo essencialmente diferente do que era em vida? Valendo-se da lógica platônica e (talvez) cartesiana, se algo “é” (ou seja, se não se trata de uma essência, por assim dizer, “circunstancial”) não poderia deixar de sê-lo simplesmente em função de um evento que, se sabe, faz parte da própria condição existencial. Ou seja, se o homem possui um espírito que é sua “essência” (ou seja, independe de outros fatores), como poderia deixar de sê-lo ao morrer?

Por tais questionamentos, é possível perceber que a lógica utilizada no Ocidente não é suficiente para conferir sentido às respostas tradicionais. A ocorrência de tal fato se deve em parte ao considerar que, para o Budismo, não há essencialmente um “eu”, não há um ente intrínseco e absolutamente dissociado de tudo, o qual se possa dizer “da pessoa” ou que seja inerente à natureza das coisas. Tudo o que vem à existência, seja material ou imaterial, depende de uma série de fatores que contribuem para a ocorrência de tais entes.






[1] Eterno ciclo de renascimentos.
[2] SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do auto-conhecimento – o caminho da correta compreensão. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2002.
[3] RINPOCHE, Kalu. Ensinamentos fundamentais do budismo tibetano – budismo vivo, budismo profundo, budismo esotérico. Brasília: Shisil Editora, 1999.
[4] É importante perceber que tais pensamentos são dirigidos ou elaborados ou ainda tratam de um “eu”, ou seja, de um ente para o qual ou ao qual determinado desejo deve ser satisfeito. Ocorre que é justamente tal ilusão que o Budismo diz ser elaborada pela mente. Dito de outra forma, o Budismo propõe que tal ente essencialmente não existe, sendo uma atividade específica de um dos agregados da existência (skandhas), a saber, a consciência.

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