quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Noções iniciais sobre o Budismo




Em alguns dicionários e enciclopédias ocidentais, o Budismo é conceituado formalmente como o faz a Enciclopédia Mirador Internacional (1986, p. 1826):

fundado na Índia por volta do século VI a.C., e inspirado nos ensinamentos de Siddarta Gautama, cognominado o Buda, o budismo é a denominação dada pelos ocidentais ao sistema religioso que visa à realização plena da natureza humana e à criação de uma sociedade perfeita e pacífica. Aberto a todos os grupos sociais, etnias, culturas e nacionalidades, desenvolveu-se por todo o Extremo Oriente. [sem grifos no original]

Quanto ao termo “Buda”, recorrendo novamente à fonte acima (p. 1823), a mesma informa que:

Buda (do sânscrito1 Buddha “desperto”, “iluminado”, adjetivo derivado de Bodhi, “despertar”) é um dos títulos ou o título principal do fundador do Budismo, Siddarta Gautama (em sânscrito) ou Siddhatta Getama (em pali2), conhecido também por outros nomes, como Çakyamuni (ou Shakyamuni, “o santo dos Çakya”, sua tribo), Bhagavat (“senhor”), Tathagata (“aquele que veio da verdade”) e Jina (“o vitorioso”). Há controvérsias quanto à data do seu nascimento, que a maioria dos autores fixa em meados do séc. VI a.C (563 a.C). O Buda nasceu em Kapilavastu, no sítio da atual Rummindei, no Nepal, e morreu em 483 a.C em Kasinagara, atual Kasi, Índia.

Em relação aos trechos transcritos, são necessárias algumas ponderações. A afirmação de que uma das finalidades do Budismo seja a de criar “uma sociedade perfeita e pacífica” talvez extrapole o que se possa considerar como essencial àquela tradição. Até porque, uma das bases da doutrina do Buda Shakyamuni aponta justamente no sentido de que toda forma de existência, em última instância, é uma ilusão e, em consequência, também o seria tal sociedade.

Já o termo Buddha, em sânscrito, até hoje ainda gera algumas discussões, mas a maioria dos autores entende que significa literalmente desperto (ou, então, plenamente ou perfeitamente desperto), pois é justamente esta a condição que se atinge, por meio de um conjunto de procedimentos que o Budismo, em suas várias escolas ou linhagens, propõe ser possível. Isso porque, segundo os budistas, toda forma de existência é permeada pelo sofrimento e encontra-se regida por uma série de forças, uma das quais é representada, pela deusa Maya ou ilusão. Ao se atingir o Pleno Despertar, não há mais como gerar ou ser atingido pelo sofrimento ou mesmo participar do ciclo de renascimentos.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que o Budismo, preliminarmente, pode ser entendido como uma filosofia e não apenas ou necessariamente como uma religião. De fato, o Budismo nunca negou a existência ou incentivou a iconoclastia dos chamados “Seres Superiores” (Devas) ou, numa linguagem mais próxima dos ocidentais, Divindades. Seres que atingiram um estado mental e uma condição tão diferenciada a ponto de, por exemplo, praticamente não gerarem mais karma, e, desta forma, terem o mérito (e não privilégio, pois o Budismo amplamente propõe que também nossa atitude é determinante para que nossa condição positiva ou negativa seja elaborada) de habitarem os chamados Reinos Dévicos, Reino dos Devas ou, numa linguagem mais próxima, Reino dos Deuses.

Assim, nas cerimônias ou rituais das diversas expressões do Budismo pelo mundo, são encontradas várias Divindades cultuadas. Exemplo disso é o Bodissatva (para alguns um Buda) Tchenrezig ou Chenrezi. A esta Divindade do Budismo Tibetano (que, no Hinduísmo é denominada Avalokiteshvara) dedicam-se, todos os dias, cerimônias ou pujas, nas quais é recitado um dos mantras mais conhecidos no Ocidente, ou seja, OM MANI PEME HUNG. Tchenrezig é a Divindade, Bodissatva ou Buda da Compaixão Ilimitada, Absoluta ou Universal.

Mas é também preciso esclarecer que o Budismo nunca se propôs a ser rotulado ou autodenominou-se como religião e, assim, literalmente não há um religare, ou (re) conectar a condição humana a “um” Deus. Isso é interessante porque o que o próprio Buda Shakyamuni sempre enfatizou, na primeira, digamos, fase de seus ensinamentos, foi uma conduta pessoal (ou ética, que no Budismo denomina-se sila) altamente escorreita, mas a finalidade disso não é fazer com que o praticante do Budismo “atinja” o “paraíso”, ou se religue ao/a um Deus, mas sim que ele cada vez mais tenha consciência plena de seus atos, pensamentos e palavras a fim de que possa gerar karma positivo ou anule o seu karma negativo.

Dito de outra forma, o que se quer é uma mudança de comportamento qualitativa e quantitativamente suficiente a fim de que se possa realizar o que o Budismo denomina de Nirvana, ou seja, um estado mental diferenciado. Desta forma, muitos veem no Budismo uma autêntica tradição ou filosofia de forte teor ético e, assim, não há uma preocupação em ser ou não uma religião, até porque, no fundo, isso não seria o mais relevante para aqueles que se dedicam à prática do Dharma. Por outro lado, o Budismo apresenta um aspecto incontestavelmente presente em suas manifestações, e bastante comum em nichos religiosos: a sacralização de espaços, imagens, textos, entre outros.

Além das informações acima, deve-se considerar que:

a)     a palavra “Buda” refere-se a um ser humano que atingiu um estado mental diferenciado, uma maneira de percepção diferenciada da realidade e, desta forma, não faz sentido chamar “Buda” de “Deus”, até porque, não há no budismo um conceito formal de um deus personificado, criador de toda existência, como o entende a cultura religiosa ocidental;

b)    “Buda”, então, refere-se a alguém que atingiu ou realizou um determinado estado mental, mas tal conotação poderia induzir a entendimentos inadequados; de qualquer forma, ao se falar “Buda”, pode-se estar falando também:

b.1) da condição búdica, ou seja, o atingimento do estado mental referido;

b.2) de um determinado Buda, ou seja, o Buda Shakyamuni, o Buda Dorje-Chang, o Buda Maitreya, o Buda Amida, entre outros.;

c)     os textos sagrados do Budismo mencionam que já existiram centenas ou milhares de Budas. Tal quantitativo se deve ao fato de que, para o Budismo, todo ser humano tem totais condições[1] para atingir o estado búdico, e isto dependerá de um conjunto de fatores, que nada tem de esotéricos ou místicos;

d)    diferentemente de outras crenças, um Buda não é nenhum ser especial, ungido ou “escolhido” para liderar toda uma comunidade. Trata-se de um ser humano até certo ponto ou aparentemente comum;

e)     freqüentemente vê-se uma confusão ao identificar a pessoa do Dalai-Lama com “O Buda” ou “Buda”, ou até à uma figura divina, o que, neste último caso, até corresponderia à realidade, visto que o Budismo Tibetano considera que o Dalai-Lama é a encarnação da divindade Avalokiteshvara (em sânscrito, ou Tchenrezig, em Tibetano). Já a pessoa que recebeu o título de Dalai (que significa “imenso como o oceano”) – Lama (que tem um significado restrito de mestre ou conselheiro espiritual, mas também “encarnação da sabedoria” ou “sabedoria” – desta forma, Dalai-lama significaria “oceano de sabedoria”) trata-se de Tenzin Gyatso, o líder político e religioso do Tibet, região encravada entre a Índia e a China, e que foi invadida por esta última no final dos anos 50 do século XX;

f)     desta forma, “Dalai-lama” corresponde também a um título, que é conferido somente a determinadas pessoas da tradição político-religiosa tibetana. Os Dalai-lamas compõem uma dinastia, semelhante em alguns aspectos às dinastias políticas do ocidente. Ocorre que no caso do Dalai-lama, assim como em alguns países, ele detém a liderança tanto política quanto espiritual do povo tibetano.

Em que pese o Budismo ser fundamentalmente uma filosofia de vida ou um modo de percepção, ao longo de sua trajetória histórica foi sendo cada vez mais considerado por terceiros não praticantes ou por aqueles que o ignoram como uma religião. É inegável que o mundo ocidental, ao ver monges, templos, rituais, entre outros, não consiga ver senão um grande sistema religioso. De fato, ele também pode ser encarado desta forma. Na verdade, o Budismo apresenta várias facetas, as quais serão percebidas por cada um na medida de sua própria condição. A fim de pontuar estes esclarecimentos iniciais, pode-se dizer, por um lado, que o Budismo é uma filosofia, se entendido este termo em sua morfologia como a amizade, amor ou filiação ao conhecimento, mas também considerando o que foi dito acima. Assim, o que um budista procura, ao iniciar seus estudos, sua prática e sua vida no caminho que o Buda propôs, há 2500 anos, é tornar-se um (plenamente) desperto para a(s) Verdade(s) Suprema(s).

Mas é preciso também atentar para uma importante diferenciação. É que, grosso modo, ao se pronunciar o termo verdade, pode também se estar associando ao conhecimento e, desta forma, o que se entende por tal verbete, no Ocidente, tradicionalmente diz respeito a uma relação entre um sujeito e um (ou vários) objeto(s) de conhecimento. E para se “demonstrar” tal relação ou se faz de maneira descritiva ou analítica (por exemplo, mostrando as partes componentes de algo) ou de maneira abstrata, mas em todos os casos, sempre pressupondo uma racionalidade ou lógica, que se pode chamar de formal. A isso, então, chama-se conhecimento.

A ênfase, no Budismo, é dada para a sabedoria, o que é bem diferente, pois se trata muito mais do que conhecimento. Sabedoria necessariamente diz respeito à presença de várias qualidades ou aspectos, como, por exemplo, uma atitude de infinita compaixão para com todos os seres existentes, uma equanimidade que ultrapassa em muito a mera noção de aplicar o “justo” para cada caso, entre outros. Assim, o Budismo apresenta uma faceta filosófica inegável.

Assim sendo e concomitantemente, o Budismo possui um caráter tipicamente religioso, ao menos naquilo que os ocidentais concebem como “religião”, visto que em suas várias vertentes, possuem uma grande quantidade de ritos, textos sagrados, cultos a divindades, entre outros aspectos nitidamente religiosos. Mas esse imenso acervo litúrgico e iconográfico possui conotações um pouco diferenciadas do que se entende por religião no mundo ocidental.

Outra face do Budismo revela que se trata de um modo de autopercepção e, desta forma, fica quase evidente seu aspecto psicológico. Isto porque, ao se engajar no estilo de vida que o Sidarta Gautama desenvolveu, inevitavelmente a pessoa inicia um intenso processo de autoconhecimento, deparando-se com suas próprias dificuldades, traumas e toda a infinidade de conteúdos mentais, mas, principalmente, tem diante de si uma valiosa ferramenta para superar e transformar todos os seus obscurecimentos para condução ao Nirvana.

Mas talvez o aspecto do Budismo que melhor reflita sua natureza é que se trata de um modo de vida ou um caminho espiritual. O Budismo é essencialmente uma prática. Não se trata, portanto, de uma atividade meramente especulativa, abstracionista ou idealista. Possui também a finalidade de solucionar problemas do cotidiano e/ou materiais, visto que se numa lógica de causa e efeito todos os fenômenos individuais e coletivos são produzidos, uma filosofia que se propõe apenas a divagar metafisicamente sobre a origem do sofrimento sem apontar o método para sua eliminação, talvez perdesse muito em conteúdo pragmático.

Assim sendo o Budismo também significa praticar o ensinamento, ou seja, o exercício da compaixão, da paciência, entre outros elementos, denominados “meios hábeis” (ou upaya, em sânscrito), para que se possa atingir o despertar. Simultaneamente, fica explícito que tais comportamentos são verificados junto a uma profunda e inexorável mudança interior, a qual igualmente revela a própria essência do Budismo.

Poderiam ser enumerados vários conceitos doutrinários ou tradicionais acerca do Budismo. Em se tratando das dimensões deste trabalho, apenas alguns são suficientes. SILVA (2002, p. 17) expõe um entendimento que ao mesmo tempo faz uma abordagem científica, moral e religiosa ao dizer que:

o budismo é uma filosofia de caráter essencialmente psicológico, uma maneira de viver, tendo em vista a Correta Compreensão, isto é, o reconhecimento da existência do sofrimento, a verdade da causa do sofrimento, “o eterno auge da felicidade” – Nirvana – e o verdadeiro Caminho que leva à cessação do sofrimento, conhecido como NOBRE CAMINHO ÓCTUPLO – Caminho da Correta Compreensão, Caminho do Meio. A palavra Buda, significando “o Iluminado”, expressa literalmente “aquele que atingiu a Completa Compreensão”; vem da palavra Bodhi, que em páli quer dizer “Suprema Compreensão, Iluminação”; o termo Budismo, pelo qual ficaram sendo conhecidos todos os seus ensinamentos, significa Caminho da Correta Compreensão (...) O termo Budismo, com o decorrer do tempo e a inclusão de rituais e outras formas externas, tornou-se rótulo de aparência sectária, como todo rótulo religioso. Buda e Budismo tornaram-se, assim, termos convencionais; contudo, os budistas preferem a denominação da Doutrina do Buda (Buda Dhamma).[2]


Por último, o pensamento de RINPOCHE (1999, p. 106) demonstra que:

quando falamos do dharma do Buddha, do que se trata fundamentalmente? O dharma oferece-nos o que é benéfico espiritualmente. Em primeiro lugar, é necessário ter uma atitude de amor, de compaixão, dirigida para o bem do outro. Sobre esta base, é preciso, em seguida, compreender o que é a mente, o motor da atividade mental. Como ela é? O que é ela? Quando, pela meditação, começamos a ter uma idéia de sua natureza, ganharmos um certo controle sobre o mental, o que permite desviar-nos do samsara e ingressar no caminho da liberação. Das numerosas tradições espirituais da Terra, estudamos, agora, o Budismo, que chamamos em tibetano o “caminho interior do Buddha”. Esta expressão refere-se, por um lado, ao fundador da tradição e, por outro, significa que está relacionada à mente, que é o interior da pessoa, semelhante ao morador de uma casa.[3] [grifos não constam do original]

Este último conceito já expõe algumas das questões mais fundamentais do Budismo. Como dito, trata-se de uma filosofia que procura investigar como se apresentam estruturalmente os processos mentais. Concomitantemente, como se originam e como podem ser eliminadas todas as formas de sofrimento que afligem qualquer criatura. Por último, a compreensão da natureza humana, seu lugar e papel em sua relação com o mundo que a cerca. É importante que se diga que tal procedimento de análise budista é um pouco diverso da metodologia e objetivo científico do mundo ocidental. Isto porque, se for tomada como exemplo a Psicologia, poderia induzir ao entendimento do Budismo como um instrumento de autoconhecimento ou auto-ajuda sem maiores pretensões, o que não corresponde aos seus objetivos.

A finalidade do Budismo vai mais além, não apenas em termos doutrinários, mas também como modus vivendi aplicável a pessoas de qualquer crença, raça, nacionalidade ou classe social. Aliás, algumas escolas do Budismo estabelecem como fala SUZUKI (1973, p. 15), que o “o Zen [Budismo] se propõe a disciplinar a mente por si mesma, fazê-la seu próprio mestre através de uma visão introspectiva na sua própria natureza. Este aprofundar-se na natureza real da sua própria mente ou na alma é o objetivo fundamental do Zen-budismo”.[4] Originado na Índia, o Budismo espalhou-se por todo o Oriente, e foi justamente nesta região mais ampla, e não tanto em sua terra natal, que se disseminou, a saber, no Sri-Lanka (ou Ceilão), no Sudeste Asiático (Camboja, Laos, Tailândia), na Ásia Central (China, Tibet, Mongólia) e Extremo Oriente (Japão).

Em cada uma dessas localidades, o Budismo tomou color próprio, adequando-se às diferentes realidades, mas sem que seus praticantes deixem de partilhar dos fundamentos essenciais, comuns às diferentes escolas e tradições, o que, aliás, é uma das características do Budismo. Atualmente, milhões de pessoas em todo o mundo o praticam e o interesse pelo Budismo é despertado em pessoas dos mais variados matizes intelectuais, sociais e, porque não dizer, espirituais, pois Tensin Gyatso, o 14º Dalai Lama, um dos grandes propagadores da doutrina, é recebido por autoridades de todos os ramos do conhecimento humano, seja científico, político ou econômico.



1 Língua clássica dos brâmanes e sacerdotes que ao tempo de Sidharta não parece ter sido popular. Significa “concluído, perfeito”; vem da preposição san que significa “com”, e da raiz kr que significa “fazer”. Língua antiga na qual foram escritos os textos religiosos do Hinduísmo e Budismo Mahayana.
2 Língua derivada do sânscrito, usada pelos monges budistas, em que foram originalmente escritos os cânones budistas da escola Theravada.
[1] Também aqui há divergência, pois algumas escolas entendem que todos os seres atingirão o estado de Buda, enquanto outras entendem ser uma energia, potencial ou possibilidade à disposição dos seres, mas que não necessariamente tal ocorrerá.
[2] SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do auto-conhecimento – o caminho da correta compreensão. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2002.
[3] RINPOCHE, Kalu. Ensinamentos fundamentais do budismo tibetano – budismo vivo, budismo profundo, budismo esotérico. Brasília: Shisil Editora, 1999.
[4] SUZUKI, Daisetz Teitaro. Introdução ao Zen-budismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.

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