Em alguns
dicionários e enciclopédias ocidentais, o Budismo é conceituado formalmente
como o faz a Enciclopédia Mirador Internacional (1986, p. 1826):
fundado na
Índia por volta do século VI a.C., e inspirado nos ensinamentos de Siddarta
Gautama, cognominado o Buda, o budismo é a denominação dada pelos ocidentais ao
sistema religioso que visa à realização plena da natureza humana e à criação de uma sociedade perfeita e
pacífica. Aberto a todos os grupos sociais, etnias, culturas e
nacionalidades, desenvolveu-se por todo o Extremo Oriente. [sem grifos no
original]
Quanto ao
termo “Buda”, recorrendo novamente à fonte acima (p. 1823), a mesma informa
que:
Buda (do
sânscrito1 Buddha
“desperto”, “iluminado”, adjetivo derivado de Bodhi, “despertar”) é um dos títulos ou o título principal do
fundador do Budismo, Siddarta Gautama (em sânscrito) ou Siddhatta Getama (em
pali2), conhecido também por outros nomes,
como Çakyamuni (ou Shakyamuni, “o
santo dos Çakya”, sua tribo), Bhagavat
(“senhor”), Tathagata (“aquele que
veio da verdade”) e Jina (“o
vitorioso”). Há controvérsias quanto à data do seu nascimento, que a maioria
dos autores fixa em meados do séc. VI a.C (563 a .C). O Buda nasceu em
Kapilavastu, no sítio da atual Rummindei, no Nepal, e morreu em 483 a .C em Kasinagara, atual
Kasi, Índia.
Em relação aos trechos transcritos, são necessárias algumas
ponderações. A afirmação de que uma das finalidades do Budismo seja a de criar
“uma sociedade perfeita e pacífica” talvez extrapole o que se possa considerar
como essencial àquela tradição. Até porque, uma das bases da doutrina do Buda
Shakyamuni aponta justamente no sentido de que toda forma de existência, em última instância, é uma ilusão e, em
consequência, também o seria tal sociedade.
Já o termo Buddha, em sânscrito, até hoje ainda
gera algumas discussões, mas a maioria dos autores entende que significa
literalmente desperto (ou, então,
plenamente ou perfeitamente desperto), pois é justamente esta a condição que se
atinge, por meio de um conjunto de procedimentos que o Budismo, em suas várias
escolas ou linhagens, propõe ser possível. Isso porque, segundo os budistas,
toda forma de existência é permeada pelo sofrimento e encontra-se regida por
uma série de forças, uma das quais é
representada, pela deusa Maya ou
ilusão. Ao se atingir o Pleno Despertar, não há mais como gerar ou ser atingido
pelo sofrimento ou mesmo participar do ciclo de renascimentos.
Em primeiro
lugar, é necessário dizer que o Budismo, preliminarmente, pode ser entendido
como uma filosofia e não apenas ou
necessariamente como uma religião. De fato, o Budismo nunca negou a existência
ou incentivou a iconoclastia dos chamados “Seres Superiores” (Devas) ou, numa linguagem mais próxima
dos ocidentais, Divindades. Seres que atingiram um estado mental e uma condição
tão diferenciada a ponto de, por exemplo, praticamente não gerarem mais karma, e, desta forma, terem o mérito (e não privilégio, pois o
Budismo amplamente propõe que também nossa atitude é determinante para que
nossa condição positiva ou negativa seja elaborada) de habitarem os chamados
Reinos Dévicos, Reino dos Devas ou, numa linguagem mais próxima, Reino dos
Deuses.
Assim, nas
cerimônias ou rituais das diversas expressões do Budismo pelo mundo, são
encontradas várias Divindades cultuadas. Exemplo disso é o Bodissatva (para
alguns um Buda) Tchenrezig ou Chenrezi. A esta Divindade do Budismo
Tibetano (que, no Hinduísmo é denominada Avalokiteshvara) dedicam-se, todos os
dias, cerimônias ou pujas, nas quais
é recitado um dos mantras mais conhecidos
no Ocidente, ou seja, OM MANI PEME HUNG. Tchenrezig é a Divindade, Bodissatva
ou Buda da Compaixão Ilimitada, Absoluta ou Universal.
Mas é também
preciso esclarecer que o Budismo nunca se propôs a ser rotulado ou
autodenominou-se como religião e, assim,
literalmente não há um religare, ou
(re) conectar a condição humana a “um” Deus. Isso é interessante porque o que o
próprio Buda Shakyamuni sempre enfatizou, na primeira, digamos, fase de seus
ensinamentos, foi uma conduta pessoal (ou ética, que no Budismo denomina-se sila) altamente escorreita, mas a
finalidade disso não é fazer com que o praticante do Budismo “atinja” o
“paraíso”, ou se religue ao/a um Deus, mas sim que ele cada vez mais tenha
consciência plena de seus atos, pensamentos e palavras a fim de que possa gerar
karma positivo ou anule o seu karma negativo.
Dito de outra
forma, o que se quer é uma mudança de comportamento qualitativa e quantitativamente
suficiente a fim de que se possa realizar o que o Budismo denomina de Nirvana, ou seja, um estado mental
diferenciado. Desta forma, muitos veem no Budismo uma autêntica tradição ou
filosofia de forte teor ético e, assim, não há uma preocupação em ser ou não
uma religião, até porque, no fundo, isso não seria o mais relevante para
aqueles que se dedicam à prática do Dharma. Por outro lado, o Budismo apresenta
um aspecto incontestavelmente presente em suas manifestações, e bastante comum
em nichos religiosos: a sacralização de espaços, imagens, textos, entre outros.
Além das informações acima, deve-se considerar que:
a)
a palavra “Buda” refere-se a um ser humano que
atingiu um estado mental
diferenciado, uma maneira de percepção diferenciada da realidade e, desta
forma, não faz sentido chamar “Buda” de “Deus”, até porque, não há no budismo
um conceito formal de um deus personificado, criador de toda existência,
como o entende a cultura religiosa ocidental;
b)
“Buda”, então, refere-se a alguém que atingiu ou
realizou um determinado estado mental, mas tal conotação poderia induzir a
entendimentos inadequados; de qualquer forma, ao se falar “Buda”, pode-se estar
falando também:
b.1) da condição búdica, ou seja, o atingimento
do estado mental referido;
b.2) de um determinado Buda, ou seja, o Buda
Shakyamuni, o Buda Dorje-Chang, o Buda Maitreya, o Buda Amida, entre outros.;
c)
os textos sagrados do Budismo mencionam que já
existiram centenas ou milhares de Budas. Tal quantitativo se deve ao fato de
que, para o Budismo, todo ser humano tem totais condições[1]
para atingir o estado búdico, e isto dependerá de um conjunto de fatores, que
nada tem de esotéricos ou místicos;
d)
diferentemente de outras crenças, um Buda não é
nenhum ser especial, ungido ou “escolhido” para liderar toda uma comunidade.
Trata-se de um ser humano até certo ponto ou aparentemente comum;
e) freqüentemente
vê-se uma confusão ao identificar a pessoa do Dalai-Lama com “O Buda” ou
“Buda”, ou até à uma figura divina, o que, neste último caso, até corresponderia
à realidade, visto que o Budismo Tibetano considera que o Dalai-Lama é a
encarnação da divindade Avalokiteshvara (em sânscrito, ou Tchenrezig, em
Tibetano). Já a pessoa que recebeu o título
de Dalai (que significa “imenso como
o oceano”) – Lama (que tem um
significado restrito de mestre ou conselheiro espiritual, mas também
“encarnação da sabedoria” ou “sabedoria” – desta forma, Dalai-lama significaria
“oceano de sabedoria”) trata-se de Tenzin
Gyatso, o líder político e religioso do Tibet, região encravada entre a
Índia e a China, e que foi invadida por esta última no final dos anos 50 do século
XX;
f) desta
forma, “Dalai-lama” corresponde também a um título, que é conferido somente a
determinadas pessoas da tradição político-religiosa tibetana. Os Dalai-lamas
compõem uma dinastia, semelhante em alguns aspectos às dinastias políticas do
ocidente. Ocorre que no caso do Dalai-lama, assim como em alguns países, ele
detém a liderança tanto política quanto espiritual do povo tibetano.
Em que pese o Budismo ser fundamentalmente uma filosofia de vida ou um
modo de percepção, ao longo de sua trajetória histórica foi sendo cada vez mais
considerado por terceiros não praticantes ou por aqueles que o ignoram como uma
religião. É inegável que o mundo ocidental, ao ver monges, templos, rituais,
entre outros, não consiga ver senão um grande sistema religioso. De fato, ele também pode ser encarado desta forma. Na verdade, o Budismo
apresenta várias facetas, as quais serão percebidas por cada um na medida de
sua própria condição. A fim de pontuar estes esclarecimentos iniciais, pode-se
dizer, por um lado, que o Budismo é uma filosofia, se entendido este termo em
sua morfologia como a amizade, amor ou filiação ao conhecimento, mas também
considerando o que foi dito acima. Assim, o que um budista procura, ao iniciar
seus estudos, sua prática e sua vida no caminho que o Buda propôs, há 2500
anos, é tornar-se um (plenamente)
desperto para a(s) Verdade(s) Suprema(s).
Mas é preciso também atentar para uma
importante diferenciação. É que, grosso
modo, ao se pronunciar o termo verdade,
pode também se estar associando ao conhecimento
e, desta forma, o que se entende por tal verbete, no Ocidente, tradicionalmente
diz respeito a uma relação entre um sujeito e um (ou vários) objeto(s) de
conhecimento. E para se “demonstrar” tal relação ou se faz de maneira
descritiva ou analítica (por exemplo, mostrando as partes componentes de algo)
ou de maneira abstrata, mas em todos os casos, sempre pressupondo uma
racionalidade ou lógica, que se pode chamar de formal. A isso, então, chama-se
conhecimento.
A ênfase, no Budismo, é dada para a sabedoria, o que é bem diferente, pois
se trata muito mais do que conhecimento. Sabedoria necessariamente diz respeito
à presença de várias qualidades ou aspectos, como, por exemplo, uma atitude de
infinita compaixão para com todos os seres existentes, uma equanimidade que
ultrapassa em muito a mera noção de aplicar o “justo” para cada caso, entre
outros. Assim, o Budismo apresenta uma faceta filosófica inegável.
Assim sendo e concomitantemente, o Budismo
possui um caráter tipicamente religioso, ao menos naquilo que os ocidentais
concebem como “religião”, visto que em suas várias vertentes, possuem uma
grande quantidade de ritos, textos sagrados, cultos a divindades, entre outros
aspectos nitidamente religiosos. Mas esse imenso acervo litúrgico e iconográfico
possui conotações um pouco diferenciadas do que se entende por religião no
mundo ocidental.
Outra face do Budismo revela que se trata de
um modo de autopercepção e, desta forma, fica quase evidente seu aspecto
psicológico. Isto porque, ao se engajar no estilo de vida que o Sidarta Gautama
desenvolveu, inevitavelmente a pessoa inicia um intenso processo de
autoconhecimento, deparando-se com suas próprias dificuldades, traumas e toda a
infinidade de conteúdos mentais, mas, principalmente, tem diante de si uma
valiosa ferramenta para superar e transformar todos os seus obscurecimentos
para condução ao Nirvana.
Mas talvez o aspecto do Budismo que melhor reflita sua natureza é que
se trata de um modo de vida ou um caminho espiritual. O Budismo é essencialmente
uma prática. Não se trata, portanto,
de uma atividade meramente especulativa, abstracionista ou idealista. Possui também
a finalidade de solucionar problemas do cotidiano e/ou materiais, visto que se
numa lógica de causa e efeito todos os fenômenos individuais e coletivos são
produzidos, uma filosofia que se propõe apenas a divagar metafisicamente sobre
a origem do sofrimento sem apontar o método para sua eliminação, talvez
perdesse muito em conteúdo pragmático.
Assim sendo o Budismo também significa praticar o ensinamento, ou seja, o exercício da compaixão, da
paciência, entre outros elementos, denominados “meios hábeis” (ou upaya, em sânscrito), para que se possa
atingir o despertar. Simultaneamente, fica explícito que tais comportamentos
são verificados junto a uma profunda e inexorável mudança interior, a qual
igualmente revela a própria essência do Budismo.
Poderiam ser enumerados vários conceitos doutrinários ou tradicionais
acerca do Budismo. Em se tratando das dimensões deste trabalho, apenas alguns
são suficientes. SILVA (2002, p. 17) expõe um entendimento que ao mesmo tempo
faz uma abordagem científica, moral e religiosa ao dizer que:
o
budismo é uma filosofia de caráter essencialmente psicológico, uma maneira de
viver, tendo em vista a Correta Compreensão, isto é, o reconhecimento da
existência do sofrimento, a verdade da causa do sofrimento, “o eterno auge da
felicidade” – Nirvana – e o verdadeiro Caminho que leva à cessação do
sofrimento, conhecido como NOBRE CAMINHO ÓCTUPLO – Caminho da Correta
Compreensão, Caminho do Meio. A palavra Buda, significando “o
Iluminado”, expressa literalmente “aquele que atingiu a Completa Compreensão”;
vem da palavra Bodhi, que em páli quer dizer “Suprema Compreensão,
Iluminação”; o termo Budismo, pelo qual ficaram sendo conhecidos todos
os seus ensinamentos, significa Caminho da Correta Compreensão (...) O termo Budismo,
com o decorrer do tempo e a inclusão de rituais e outras formas externas,
tornou-se rótulo de aparência sectária, como todo rótulo religioso. Buda e
Budismo tornaram-se, assim, termos convencionais; contudo, os budistas
preferem a denominação da Doutrina do Buda (Buda Dhamma).[2]
Por último, o pensamento de RINPOCHE (1999, p. 106) demonstra que:
quando falamos do dharma
do Buddha, do que se trata fundamentalmente? O dharma oferece-nos o que
é benéfico espiritualmente. Em primeiro lugar, é necessário ter uma atitude
de amor, de compaixão, dirigida para o bem do outro. Sobre esta base, é
preciso, em seguida, compreender o que é a mente, o motor da atividade mental.
Como ela é? O que é ela? Quando, pela meditação, começamos a ter uma idéia
de sua natureza, ganharmos um certo controle sobre o mental, o que permite
desviar-nos do samsara e ingressar no caminho da liberação. Das
numerosas tradições espirituais da Terra, estudamos, agora, o Budismo, que
chamamos em tibetano o “caminho interior do Buddha”. Esta expressão refere-se,
por um lado, ao fundador da tradição e, por outro, significa que está
relacionada à mente, que é o interior da pessoa, semelhante ao morador de uma
casa.[3]
[grifos não constam do original]
Este último conceito já expõe algumas das questões mais fundamentais do
Budismo. Como dito, trata-se de uma filosofia que procura investigar como se
apresentam estruturalmente os processos mentais. Concomitantemente, como se
originam e como podem ser eliminadas todas as formas de sofrimento que afligem
qualquer criatura. Por último, a compreensão da natureza humana, seu lugar e
papel em sua relação com o mundo que a cerca. É importante que se diga que tal
procedimento de análise budista é um pouco diverso da metodologia e objetivo
científico do mundo ocidental. Isto porque, se for tomada como exemplo a
Psicologia, poderia induzir ao entendimento do Budismo como um instrumento de
autoconhecimento ou auto-ajuda sem maiores pretensões, o que não corresponde
aos seus objetivos.
A finalidade do Budismo vai mais além, não apenas em termos
doutrinários, mas também como modus vivendi aplicável a pessoas de
qualquer crença, raça, nacionalidade ou classe social. Aliás, algumas escolas
do Budismo estabelecem como fala SUZUKI (1973, p. 15), que o “o Zen [Budismo]
se propõe a disciplinar a mente por si mesma, fazê-la seu próprio mestre
através de uma visão introspectiva na sua própria natureza. Este aprofundar-se
na natureza real da sua própria mente ou na alma é o objetivo fundamental do
Zen-budismo”.[4]
Originado na Índia, o Budismo espalhou-se por todo o Oriente, e foi justamente
nesta região mais ampla, e não tanto em sua terra natal, que se disseminou, a
saber, no Sri-Lanka (ou Ceilão), no Sudeste Asiático (Camboja, Laos,
Tailândia), na Ásia Central (China, Tibet, Mongólia) e Extremo Oriente (Japão).
Em cada uma dessas localidades, o Budismo tomou color
próprio, adequando-se às diferentes realidades, mas sem que seus praticantes
deixem de partilhar dos fundamentos essenciais, comuns às diferentes escolas e
tradições, o que, aliás, é uma das características do Budismo. Atualmente,
milhões de pessoas em todo o mundo o praticam e o interesse pelo Budismo é
despertado em pessoas dos mais variados matizes intelectuais, sociais e, porque
não dizer, espirituais, pois Tensin Gyatso, o 14º Dalai Lama, um dos grandes
propagadores da doutrina, é recebido por autoridades de todos os ramos do
conhecimento humano, seja científico, político ou econômico.
1
Língua clássica dos brâmanes e sacerdotes que ao tempo de Sidharta não parece
ter sido popular. Significa “concluído, perfeito”; vem da preposição san que significa “com”, e da raiz kr que significa “fazer”. Língua antiga
na qual foram escritos os textos religiosos do Hinduísmo e Budismo Mahayana.
2
Língua derivada do sânscrito, usada pelos monges budistas, em que foram
originalmente escritos os cânones budistas da escola Theravada.
[1] Também aqui há divergência, pois
algumas escolas entendem que todos os
seres atingirão o estado de Buda, enquanto outras entendem ser uma energia,
potencial ou possibilidade à disposição
dos seres, mas que não necessariamente tal ocorrerá.
[2] SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do auto-conhecimento –
o caminho da correta compreensão. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix,
2002.
[3] RINPOCHE, Kalu. Ensinamentos
fundamentais do budismo tibetano – budismo vivo, budismo profundo, budismo
esotérico. Brasília: Shisil Editora, 1999.
[4] SUZUKI, Daisetz Teitaro. Introdução
ao Zen-budismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
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