quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Um pouco de raiva não (?) faz mal a ninguém...



Esse texto tem a proposta de, em breves linhas, apresentar alguns posicionamentos acerca de um sentimento, energia ou motivação amplamente observada na história da humanidade. Uma de suas finalidades é contribuir para que se possa compreender a fenomenologia e, principalmente, valendo-se de certas ferramentas conceptuais e empíricas, desenvolver alternativas para a compreensão e transformação de uma das mais poderosas elaborações humanas: a raiva (ou ira). Para isso, utilizaremos um arcabouço teórico-conceptual científico e de uma tradição espiritual específica, os quais serão explicitados ao longo do discurso. Comecemos pelo primeiro.

Utilizaremos, inicialmente, o trabalho de Carl Gustav Jung para nos auxiliar. Mas, para falarmos sobre a raiva em Jung, é necessário explicitar dois conceitos muito importantes: os arquétipos e o inconsciente coletivo. Em seu espetacular Os arquétipos e o inconsciente coletivo*, Jung nos expões estas duas, por assim dizer, categorias. Daquela primeira, diz que:

'Archetypus' é uma perífrase explicativa do eidos platônico. Para aquilo que nos ocupa, a denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos (...)

O conceito de 'archetypus' só se aplica indiretamente às représentations collectives, na medida em que designar apenas aqueles conteúdos psíquicos que ainda não foram submetidos a qualquer elaboração consciente. Neste sentido, representam, portanto, um dado anímico imediato (...) O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta. (grifos nossos)

Que leituras podem ser feitas destas palavras de Jung? O que ele chama de arquétipo é todo (ou quase todo) conteúdo (mental) que ainda se encontra, como ele mesmo diz, em um estado primordial, ou seja, que não passou por qualquer tipo de interpretação, conceptualização ou racionalização consciente. Isso significa que os arquétipos são um conjunto por assim dizer "bruto" de material de nossa psique, mas que aí se encontra “desde sempre”. Dito de outra forma, não há uma data ou dia definido no qual o arquétipo foi produzido, pois ele pertence ao próprio processo de formação daquilo que denominamos humanidade. Perde-se na noite dos tempos a construção do arquétipo.

Por outro lado, ao dizer que ainda não foi feita “qualquer elaboração consciente” representando “um dado anímico imediato”, o mestre de Viena nos leva ao encontro mesmo de um conjunto por assim dizer “virgem” de conteúdos da anima, entendida esta em seu sentido original grego. Sendo assim, os arquétipos são, literalmente, autênticos componentes de nosso mundo interior ainda não “visitado” por qualquer viajante com intenções de seu estudo. Ali estão, desde sempre, mas lembrando de que se trata de material inconsciente. Sobre este último conceito, falaremos em seguida, apenas para deixar bem pontuado que Jung não coloca os arquétipos como um dado elaborado por nossa mente. Eles simplesmente “são o que são”, sem quaisquer exegeses ou qualificações.

Passemos ao conceito de inconsciente coletivo. É definido como:

Uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos (...)

Minha tese é a seguinte: à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico, de carácter coletivo, não-pessoal, ao lado do nosso inconsciente, que por sua vez é de natureza inteiramente pessoal e que – mesmo quando lhe acrescentamos como apêndice o inconsciente pessoal – consideramos a única psique passível de experiência. O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência. (grifos nossos)

Aqui os conceitos começam a se complexificar (este verbo não existe em nosso dicionário). Se por um lado o inconsciente pessoal é um fenômeno de ocorrência, como o próprio nome diz, individual, ou seja, desenvolvida no espaço do self, o inconsciente coletivo necessariamente pressupõe sua estruturação, como igualmente o nome o indica, a partir de experenciações (este substantivo não existe em nosso dicionário) coletivas. Em outros termos, o inconsciente coletivo tem existência (totalmente) independente do individual.

Ocorre que enquanto o inconsciente pessoal é composto por experiências pessoais que foram esquecidas ou reprimidas, o coletivo simplesmente é formulado por incontáveis vivências que, no fundo, não pertencem a ninguém. Quem pode dizer que existe um conceito ou significado único para as inumeráveis situações passadas pela raça humana desde seu estabelecimento no planeta? É impossível fazer uma unívoca e categórica afirmação de que só existe um “tipo” de herói, de mulher ou de divindade.

Só que Jung vai além ao dizer que o inconsciente coletivo é herdado e não conquistado (ou adquirido), ou seja, é literalmente passado de geração a geração e, assim, cada ser humano teria não necessariamente em estado latente e mesmo que não queira, um corpus de “formas preexistentes” que fazem parte de cada um de nós. Fazendo uma leitura superficial deste trecho, pode até parecer que Jung entende que o sistema consciente e o sistema inconsciente convivem paralela ou simultaneamente, sem haver relação direta de um com o outro. Mas não é bem assim. Mais adiante, Jung explicita esta relação da seguinte forma:

O inconsciente é a psique que alcança, a partir da luz diurna de uma consciência espiritual, e moralmente lúcida, o sistema nervoso designado há muito tempo por “simpático”. Este não controla como o sistema cérebroespinal a percepção e a atividade muscular e através delas o meio ambiente; mantém no entanto o equilíbrio da vida sem os órgãos dos sentidos, através das vias misteriosas de excitação, que não só anunciam a natureza mais profunda de outra vida, mas também irradia sobre ela um efeito interno. Neste sentido, trata-se de um sistema extremamente coletivo: a base operativa de toda participation mystique, ao passo que a função cérebro-espinal culmina na distinção diferenciada do eu, e só apreende o superficial e exterior sempre meio do espaço (...)

O inconsciente é considerado geralmente como uma espécie de intimidade pessoal encapsulada, mais ou menos o que a Bíblia chama de “coração”, considerando-o como a fonte de todos os maus pensamentos. Nas câmaras do coração moram os terríveis espíritos sanguinários, a ira súbita e a fraqueza dos sentidos. Este é o modo como o inconsciente é visto pelo lado consciente. A consciência, porém, parece ser uma essencialmente uma questão de cérebro, o qual vê tudo, separa e vê isoladamente, inclusive o inconsciente, encarado sempre como meu inconsciente. Pensa-se por isso de um modo geral que quem desce ao inconsciente chega a uma atmosfera sufocante de subjetividade egocêntrica, ficando neste beco sem saída à mercê do ataque de todos os animais ferozes abrigados na caverna do submundo anímico.

Verdadeiramente, aquele que olha o espelho da água vê em primeiro lugar sua própria imagem. Quem caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo. O espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com a persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira (...)

Esta é a primeira prova de coragem no caminho interior, uma prova que basta para afugentar a maioria, pois o encontro consigo mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto pudermos projetar o negativo à nossa volta. Se formos capazes de ver nossa própria sombra, e suportá-la, sabendo que existe, só teríamos resolvido uma pequena parte do problema. Teríamos, pelo menos, trazido à tona o inconsciente pessoal. A sombra, porém, é uma parte viva da personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. Não é possível anulá-la argumentando, ou torná-la inofensiva através da racionalização (...)

A reação necessária e da qual o inconsciente coletivo precisa se expressa através de representações formadas arquetipicamente. O encontro consigo mesmo significa, antes de mais nada, o encontro com a própria sombra. A sombra é , no entanto, um desfiladeiro, um portal estreito cuja dolorosa exigüidade não poupa quem quer que desça ao poço profundo. Mas para sabermos quem somos, TEMOS DE CONHECER A NÓS MESMOS, porque o que se segue à morte é de uma amplitude ilimitada, cheia de incertezas inautidas.” (grifos nossos)

De tudo o que foi transcrito, podemos observar alguns aspectos muito importantes. Primeiro, por se tratar do fórum onde se encontram ou são elaborados os conteúdos dos quais não temos percepção direta ou objetiva e, também, do qual principalmente não se tem controle, o inconsciente coletivo é um fenômeno o qual a raça humana sempre considerou, por assim dizer, temerário. Isso porque é ali que mora tudo aquilo que nós insistimos em querer conceituar mas que, por ironia das existências, é o que menos conseguimos vivenciar em sua plenitude, visto que “nas câmaras do coração moram os terríveis espíritos sanguinários, a ira súbita e a fraqueza dos sentidos”.

Que fique claro aqui que não estou igualando ou comparando o inconsciente coletivo às nossas emoções. Estas e o inconsciente coletivo têm algo em comum: sua fenomenologia não pressupõe, ao menos em princípio, a existência de dados, informações ou vivências racional ou objetivamente elaboradas. Ou seja, simplesmente ocorrem (ou existem). Mas, e esta pergunta é importante, tal ocorrência é tão “aleatória” assim? Em segundo lugar, e não há qualquer novidade em afirmar isso, Jung entende que é (somente?) por meio da descoberta de si mesmo que é possível fazer a verdadeira e única viagem que qualquer ser humano deveria propor ao longo de uma existência.

Isto porque, descobrir a si implica também encarar a sombra, esta parte nada propalada de nós mesmos, mas que tem fundamental importância no processo de construção de um ser total, que tanto conhece seu lado iluminado quanto seu lado escuro e, principalmente, os integra de maneira sábia a fim de que sua vida possa atingir plenitude. Nada disso poderá ser realizado se estivermos às voltas com quaisquer outras atividades que desviem a atenção daquele objetivo.

Por ora, o que foi dito acerca dos arquétipos e do inconsciente coletivo já é suficiente, visto que adiante avançaremos na compreensão de todos estes conceitos. Agora, para que passemos à relação daqueles com a raiva utilizaremos o cabedal de conhecimentos desenvolvidos por uma das tradições espirituais mundiais mais reverenciadas em todo o mundo: o Budismo e, em particular, o Budismo Tibetano e uma de suas representantes.

Thubten Chodron, no seu Trabalhe sua raiva: liberte-se dos sentimentos negativos e conquiste a felicidade duradoura**, aborda, do ponto de vista do Budismo, a raiva e vários assuntos correlatos. Conceitualmente, o que vem a ser tal sentimento? Para a Autora trata-se de

Um fator mental que, incapaz de suportar uma pessoa, objeto, situação ou idéia, abriga uma vontade prejudicial contra ela ou desejo de lhe causar dano. A raiva cobre uma gama de emoções que inclui aborrecimento, irritação, frustração, rancor, beligerância, ressentimento e ódio. Embora a palavra “raiva” possa algumas vezes ser usada em sentido positivo, aqui, como uma das fontes das emoções desordenadas, ela possui somente um significado negativo.

O precursor da raiva é um fator mental chamado de atenção imprópria, que, nesse caso, exagera as qualidades negativas de uma pessoa, objeto, situação ou idéia, ou projeta as qualidades negativas que não estão ali, criando, dessa forma, uma história incorreta sobre esse alguém. (grifos nossos)

De início, é importante perceber que a Autora não classifica, por assim dizer, a raiva como um sentimento ou emoção, mas como um “fator mental”. Tal approach conceptual é comum em algumas filosofias orientais, pelo fato de que ocorrências psicofísicas não são estudadas em separado, mas num conjunto que apenas por conveniência didática é exposto separadamente. De qualquer forma, a raiva não é em si mesma um sentimento, mas “cobre” (ou seja, manifesta-se como) uma série de emoções, tais como o ódio, este sim, uma emoção, digamos, extremamente intensa.

Por outro lado, sua origem (ou precursor, como chama a Autora) pode ser observada na indicada “atenção imprópria”, ou seja, uma maneira inadequada de percepção da realidade. Não se trata de mera percepção “errada”, mas Thubten Chodron toma em consideração o fato de que a raiva tem como precedente uma superestima de qualidades que não apenas e efetivamente não fazem parte da pessoa, coisa ou situação que é objeto das considerações de alguém, mas também que tal atividade as exagera, levando a pessoa a realmente acreditar nisso.

De tudo o que foi dito e afinal de contas, que relação existe entre os arquétipos, o inconsciente coletivo a raiva e, como proposto, quais seus desdobramentos? Podemos começar nossa resposta com outras perguntas: por que vamos aos templos e participamos de crenças religiosas? Por que elaboramos os símbolos e estes são tão representativos para os humanos? O que há nos sonhos que nos remetem a um mundo em que a rigor não podemos ter e muito menos devemos ter controle? Há um mundo além deste mundo, ou seja, o que ocorre ou contém o além-vida que tanto fascínio e evidente terror desperta na humanidade?

Os arquétipos e o (in)consciente coletivo vêm nos ajudar a fazer devidas ponderações e, quem sabe, elaborar respostas nada definitivas. Na medida em que aquele ilimitado conteúdo pode diuturnamente ser (e efetivamente é) utilizado leva à intuição de que, na verdade, inconsciente pessoal (ou individual), inconsciente coletivo e consciência não são, de fato, autônomos, mas simplesmente fazem parte de um todo único que chamamos ser. E tal conjunto, por sua própria complexidade, já é capaz de produzir situações ou produtos como a raiva.

Como produzimos a raiva? Um desejo insatisfeito? Uma crítica ilegítima? O assassinato cruel de um ente querido? Muito mais do que perceber a causa próxima, ao compreendermos que as raízes remotas da raiva podem estar justamente localizadas nesse universo (não tão) desconhecido, o qual denominamos inconsciente, temos a real possibilidade de uma transformação interior. Mas, pergunta-se novamente: que relação há entre a formação da raiva e os conceitos expostos? Como, por exemplo, relacionar uma atitude descontrolada e motivada pela raiva com, por exemplo, a simples menção ao símbolo da suástica nazista?

A começar pelo simples fato de que ao mencionar este último, muitas pessoas já pensariam em sofrimento, medo, morte, opressão e, também...raiva. Poderiam argumentar alguns que a evidência de todo o horror que o nazismo impôs ao mundo, durante a 2ª Guerra Mundial não legitima a mencionada relação até mesmo pelo fato de que não apenas se trata de fato passado que induz a um raciocínio ou lógica falaciosa. Mas, se é assim, porque então simplesmente não dissociar o nazismo de todos os sentimentos mencionados? Além de todos estes aspectos, de natureza tipicamente conceitual, a proposta deste texto também é apresentar alternativas para a transformação interior. Daí, não é difícil chegar à um último questionamento: a raiva tem alguma utilidade?

Nos responde Thubten Chodron:

Embora a raiva não seja um fonte confiável, necessária ou benéfica de informação para detectar o que está errado, ela nos faz saber que nossa mente está perturbada e que certos botões foram acionados em nós. Em vez de agir segundo nosso padrão habitual de responsabilizar os outros por nossa raiva, podemos notar que, para os nossos botões serem acionados, são necessários dois fatores: as ações dos outros e o fato de termos esses botões. Se os removermos, não haverá nada para ser acionado! Naturalmente, isso requer muito trabalho interno de nossa parte.


Vamos remover nossos botões?


*3a. edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

**Rio de Janeiro: Nova Era, 2007.

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